30 anos da sua morte Sobre Amílcar Cabral |
Economista. Membro do Comité Central
do PCP
Para falar de Amílcar Cabral, os espaços (os caracteres!) vão sendo cada vez mais escassos. Pela sua dimensão humana, pela relevância das suas ideias-chave, pelo exemplo de revolucionário, de marxista, pelo que resiste às décadas, e aproximam-se três, sobre o seu assassinato a 20 de Janeiro de 1973.
O homem
Os vários sentidos do contributo de Amílcar Cabral escoram-se na sua quase desconcertante simplicidade (1), que coexiste com a enorme complexidade dos temas sobre que reflectiu e das tarefas que assumiu por decisão pessoal e pela dinâmica colectiva em que se inseriu.
Não encontro melhor adjectivo que humanista para essa postura. Essa dimensão humana ganha toda a expressão quando o dirigente da luta da libertação de dois povos – de Cabo Verde e da Guiné-Bissau – do jugo colonial português, revela também sentir como seu o povo português.
A simples (!) destrinça entre o regime fascista e colonialista de Portugal, contra quem dirigia a luta, e o povo português que (também) o sofria, é um dos aspectos mais marcantes da sua personalidade. É uma atitude que merece o apodo de corajosa pois se faz parte da preparação para a (e da ideologia da) guerra desumanizar o inimigo, se é fácil suscitar ódios, em contrapartida, mostra uma enorme (e magoada) lucidez ver – e não o esconder! –, no aparente e próximo inimigo, a vítima do mesmo poder contra que se trava uma luta de vida ou morte (2).
E, sobre o homem, não se pode ainda esquecer, por mais sucinta que seja a anotação, a referência ao técnico, ao engenheiro agrónomo que, com grande exigência de rigor científico, fez a sua formação na universidade, em Lisboa, estudou a erosão dos solos no Alentejo e a morte súbita do cafeeiro em Angola, fez o recenseamento agrícola da Guiné-Bissau.
Ideias-chave
Pelo enunciado de ideias-chave, resume-se, telegraficamente mas procurando não se ser redutor, o mais significativo do pensamento de Amílcar Cabral.
Das referências ao homem, ao técnico e ao revolucionário, decorre a importância da ligação entre teoria e prática. O volume I das Obras escolhidas de Amílcar Cabral (3) tem o título A arma da teoria – unidade e luta e o II A prática revolucionária – unidade e luta II, e é feliz e esclarecedora a escolha desses títulos pois traduz a procura constante em fazer da teoria, do estudo, da reflexão, a arma para a prática revolucionária.
Outra ideia-chave é a unidade. Não só a unidade dialéctica – a arma da teoria indispensável para a prática revolucionária e esta indispensável para aquela – mas também a inovadora unidade na luta e orgânica entre os povos de Cabo Verde e da Guiné Bissau, conduzida por um único partido – o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde – para se conquistar a independência de dois países, levando à criação de dois Estados em espaços nacionais autónomos, com o mesmo partido saído da luta a manter a unidade entre diferentes... aliás porque apenas entre diferentes pode haver unidade. E a ideia da unidade “dos povos de Cabo Verde e Guiné-Bissau”, com base em/reforço de complementaridades, inseria-se numa ideia mais larga da unidade africana – PAI... – e da unidade da luta de libertação dos povos do colonialismo e, também, da exploração capitalista.
A estas ideias-chave, junta-se uma outra, só aparentemente menor: a da relevância do factor cultural. Na chamada “Declaração da Praia” (4) pode ler-se: “Na linha do pensamento de Cabral, (...) quanto menos as bases materiais forem adequadas às relações sociais a serem criadas, mais devem ser tomados em consideração os elementos culturais nos processos de transição (...) cada povo deve poder dar a sua contribuição própria ao património mundial, graças a uma produção cultural original e dinâmica, verdadeiramente popular e livre de se exprimir criativamente (e) se o particular se chama cultura e responde deste modo às exigências da vida quotidiana e da identidade de cada povo, a solidariedade internacional é também uma exigência do pensamento e da acção”.
A relevância do factor cultural não apaga nem diminui a abordagem dialéctica e a perspectiva materialista histórica, de onde a ideia-chave da importância decisiva da libertação das forças produtivas, espartilhadas pelas relações sociais de produção coloniais e neo-coloniais. Para Cabral, a libertação das forças produtivas nos países sob o jugo colonial era determinante para a verdadeira independência dos povos.
Outra ideia-chave, esta merecedora de referência particular pelo modo como provocou e “encantou” quem, na década de 60 e começos da de 70, “pensou a revolução”, é a do suicídio da pequena burguesia. Na impossibilidade de mais fazer que resumir o essencial, cito o próprio Amílcar Cabral quando escreveu que “esta alternativa – trair a revolução ou suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional”, no pressuposto, na sua análise numa perspectiva de luta de classes, da inexistência de uma classe revolucionária que pudesse, nesses locais, conduzir a luta.
Não quereria isto dizer que o PAIGC fosse um partido de pequeno-burgueses mas que os seus dirigentes, na consciência da luta política que travavam, incluíam a de que contra si, como parte de uma classe, lutavam e que, por isso, a sua opção de revolucionários serem semelhava um suicídio (como classe!).
Porquê o assassinato?
O PAIGC levou, com a declaração da independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973, a sua tarefa até ao fim de uma etapa. Impedi-lo teria sido uma das razões do assassinato de Amílcar Cabral que, num relatório já de Janeiro de 1973, escrevia que “a nossa situação é a de um Estado independente de que uma parte do território nacional, nomeadamente os centros urbanos, está ocupada por uma potência estrangeira” e definia como se iria proclamar a independência.
Mas se o seu assassinato não impediu essa machadada no colonialismo português, já terá sido determinante para o agravar das dificuldades, e depois abrupto rompimento, na concretização do projecto de unidade Cabo Verde-Guiné-Bissau (Uma luta, um partido, dois países, título do recentíssimo livro de Aristides Pereira), que concitava alguma animosidade – e bem mais do que isso... – por parte de alguns dos que, sem o desaparecimento de Cabral, não teriam força para o combater. Além de que a capacidade de Amílcar Cabral, com o seu rigor e exigência do ponto de vista técnico-científico, seria determinante no equacionar e na resolução de dificuldades de projecto tão inovador e ambicioso.
Mas a História (e a política) não é o que poderia ter sido, é... o que é depois do que foi!
Era Cabral marxista?
O simpósio internacional, organizado pelo PAICV na capital de Cabo Verde em Janeiro de 1983, para assinalar o 10º aniversário do assassinato de Amílcar Cabral e consagrado à sua obra e pensamento, juntou um grande número de participantes (5) de várias origens, nacionais, continentais e ideológicas, que, a partir da obra e do pensamento de Cabral, reflectiram o Mundo, a sua mudança e como a fazer. Do simpósio, suas comunicações e documentos, editou-se o volume de 705 páginas já citado. Refiro esta publicação porque nela se encontra um repositório de contributos, alguns de grande importância a todos os títulos, e ainda porque nela se aborda uma outra questão que, por vezes, surge quando se fala de Amílcar Cabral: era ele marxista? Aproveito dois trechos, meros aperitivos para aprofundada fundamentação da resposta que, a meu ver, só pode ser afirmativa.
Um, de Imre Marton, universitário húngaro, afirma que Amílcar Cabral faz parte da “reprodução alargada do pensamento marxista (que) é, em suma, o devir histórico da identidade do pensamento marxista”, e acrescenta “como toda a identidade, ela é confrontada com as mudanças que se operam no tempo e com as especificidades que encontra no curso da sua extensão no espaço (...) A grandeza de Cabral foi a de ter sabido detectar e responder às exigências de correntes do devir histórico da identidade do pensamento marxista. Se ele encontrou respostas adequadas aos imperativos da luta de libertação nacional a partir de uma situação singular, a da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, foi porque ele localizou o mundial e mundializou o local.”(6)
O outro trecho é da Declaração final do simpósio:
“A época das lutas ainda de modo nenhum terminou (...) Trata-se muito claramente da gigantesca luta de classes, que entrou numa fase nova da sua dimensão mundial. Uma burguesia sem fronteiras conseguiu dotar-se de bases técnicas e jurídicas para a sua dominação (...) Essas lutas não se revestem de um carácter linear. Elas são atingidas por contradições muitas vezes dolorosas, devidas a factores internos de classes ou culturas, bem como a factores externos de dominação económica e política e, às vezes, mesmo militar. Amílcar Cabral, que foi um dos autores do despertar das consciências populares, e dos dirigentes das lutas de libertação, também deu um impulso novo à reflexão teórica. É missão dos intelectuais prosseguir essa tarefa de um pensamento ligado à prática e de práticas fecundadas pelo pensamento.”
Notas
(1) Para cuja caracterização o que Manuel Alegre conta em Continuar Cabral, Grafedito/Prelo-Estampa, 1984 dispensa grandes exposições: “...de repente ele virou-se para mim e disse: ‘Sabes o que me apetecia? Apetecia-me ser ponta esquerda do Benfica ou chefe de orquestra do Morro’”.
(2) Num livro de Miguel Urbano Rodrigues, O tempo e o espaço em que vivi - 1, Campo das Letras, 2002, há páginas dedicadas a encontros com Amílcar Cabral em que tal se reflecte de forma impressiva: “Emocionou-me ouvi-lo, numa antevisão do futuro próximo, lamentar um absurdo. (...) Antes de disparado o primeiro tiro já lhe doía a inevitabilidade da guerra. Sofria pela juventude que iria morrer nos campos de batalha. A sua gente teria de morrer para que a História avançasse; os portugueses, esses seriam triturados pela máquina do colonialismo, como carne para canhão de uma causa condenada. ‘É terrível, angustiante, sabermos que isso vai acontecer’ – não esqueço as suas palavras – ‘e não podermos deter a máquina da morte, accionada pela irracionalidade do colonialismo mais retrógrado de todos os colonialismos’”.
(3) Editadas pela Seara Nova, em 1977.
(4) Declaração final, aprovada pelos participantes no Simpósio Internacional Amílcar Cabral a 20 de Janeiro de 1983, em Continuar Cabral.
(5) Cabo-verdianos:
Aristides Pereira, Pedro Pires, Olívio Pires, Dulce Almada Duarte e
dezenas de quadros.
Convidados estrangeiros: Leopold Senghor,
Lúcio Lara, Alda Espírito Santo, O. Martichine, Basil Davidson,
Ario L. de Azevedo, Jean Suret-Canale, R. Chilcote, J. Medeiros Ferreira,
Nzongola-Ntalaja, Manuel Alegre, François Houtart e G. Lemercinier,
M. Glisenti, Mário de Andrade, Luis Moita, Bernard Magubane, Sérgio
Ribeiro, M. Diawara, Babacar Sine, Solodovnikov, Yves Benoit, I. Wallerstein,
P. Pierson-Mathy, L. Luzzato, Imre Marton, S. Bosgra, Jean Ziegler, Sylvia
Hill, K. Roth, Álvaro Mateus, Pascoal Mocumbi, T. Ngakoutou, E. Apronti,
O. Dzuverovic, Kim San Koun, A. I. Sow, N. Kamati, D. Cindi, Jorge Manfugas,
G. Chaliand, S. Malley (ordem apresentada pelos organizadores de acordo com
as comunicações e distribuição por temas).
(6) “L’apport d’Amilcar Cabral à une universalisation concrète de la pensée revolutionnaire, marxiste”.
«O Militante» - N.º 262 Janeiro/Fevereiro de 2003