A grande viragem de 1962
(Algumas notas à margem)

 



Membro do Comité Central do PCP

Em 1962 Portugal encontrava-se perante uma curva da sua História.

O “império colonial” salazarista, que constituíra um dos pilares do regime fascista, começava a ruir. O início da guerra de libertação em Angola, em Fevereiro de 1961, e a libertação de Goa, em Dezembro desse ano, abriram uma nova frente da crise do regime, no plano nacional e internacional, tornaram mais claro o seu carácter retrógrado, a sua incapacidade de dar resposta aos problemas do país e do povo português. E no plano nacional a ditadura ainda não se recompusera do abalo sofrido com as grandiosas manifestações populares antifascistas que marcaram, em 1958, a candidatura à Presidência da República do general Humberto Delgado, como candidato da Oposição1 .

A ditadura salazarista, que reagira a esta conjuntura intensificando a repressão, reforçando e depurando o seu aparelho militar, policial e legislativo2 , não conseguiu mesmo assim, deter a luta popular.

O envio dos primeiros contingentes militares para Angola, em inícios de 1961, desencadeia lutas populares e de soldados contra a guerra colonial3 . Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um novo fluxo da luta reivindicativa. Denunciando a farsa eleitoral fascista apresentam-se candidatos da Oposição às “eleições” para a Assembleia Nacional, numa campanha de denúncia da política do regime, que culmina em grandes manifestações de protesto contra a burla eleitoral, em Novembro de 1961.

As jornadas de Maio

Na sequência das lutas de 1961, os primeiros meses de 1962 trazem algumas novas características ao movimento democrático: a passagem à luta política aberta das massas populares contra a ditadura fascista, fora dos períodos eleitorais.

Enquanto os sectores liberais da Oposição continuavam paralisados pela queda das suas ilusões legalistas após a campanha de Humberto Delgado4 , e outros sectores democráticos queimavam as suas energias em projectos putchistas5 , o PCP conseguiu desenvolver e reforçar a sua acção para o desenvolvimento da luta política nas condições do novo fluxo revolucionário que se criara: desde fins de 1959 aos fins de 1961 duplicara o número de membros do Partido, o número de simpatizantes e as tiragens do «Avante!».

E em Março de 62 um novo factor deu mais ânimo à luta popular, com o início das emissões da Rádio Portugal Livre, que levantou no país uma onda de entusiasmo e reforço de confiança na luta.

O primeiro semestre de 1962 foi um período de intensa luta contra a ditadura fascista, que alterou profundamente a correlação de forças no movimento democrático e lhe abriu novas perspectivas.

Na base dessa alteração, esteve o grande fluxo registado nas lutas operárias (na Carris, nos Tabacos, na Parry & Son, na CUF), com concentrações nos sindicatos e nas empresas, paralisações, abaixo-assinados. Ao mesmo tempo desencadeia-se uma poderosa luta dos operários rurais pelo horário das 8 horas, num movimento que abrangeu o Alentejo e parte do Ribatejo e da Estremadura.

Um traço novo que nas lutas de 1961-62 se evidenciou foi a conjugação directa da luta reivindicativa dos trabalhadores com a luta política antifascista, a associação de reivindicações económicas e sociais com a luta pela liberdade e a democracia. Essa conjugação tornou-se prática e força do movimento democrático e alargou-lhe as perspectivas. E com essas lutas e essa associação, a classe operária afirmou, na acção, o seu papel de vanguarda na luta do povo português.

Outras camadas da população entram também em luta, com particular destaque para a juventude: a partir de Março inicia-se a grandiosa luta dos estudantes das três Universidades pelos seus direitos associativos e pela autonomia universitária6 .

Como expressões superiores da luta popular sucedem-se manifestações políticas nas ruas, a apelo do PCP: 50 mil pessoas no Porto, no 31 de Janeiro; 20 mil comemorando, em 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher; milhares de mineiros em Aljustrel, a 28 de Abril.

É no 1º de Maio, Dia do Trabalhador, que toda esta movimentação ganha a sua forma e expressão mais alta e mais poderosa: mais de 100 mil pessoas nas ruas de Lisboa, enfrentando a repressão e reclamando liberdade, democracia, o fim da guerra de Angola, a libertação dos presos políticos, a extinção da PIDE, a demissão de Salazar 8 .

Também em muitas outras localidades do país esse 1º de Maio foi jornada de luta dos trabalhadores e do povo. E a 8 de Maio, assinalando o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo, novamente se manifestaram em Lisboa dezenas de milhares de pessoas.

É também na sequência das lutas do 1º de Maio que os assalariados rurais do Sul, com sucessivas concentrações, paralisações de trabalho, greves e manifestações, impõem a jornada de 8 horas, alcançando uma histórica vitória para o proletariado português.

A conjugação da luta de diversos sectores da população afirmou-se, neste período, como prática e força do movimento democrático e impulsionou novas formas da luta antifascista7. E a associação da luta económica e social com a luta pela liberdade e a democracia alargou as perspectivas da luta e deu-lhe mais coerência.

Com a sua intervenção política aberta, a luta popular de massas deu novo impulso à reactivação da luta unitária antifascista. Em fins de 1962 cria-se a Frente Patriótica de Libertação Nacional, tendo na sua Junta Revolucionária o general Delgado, Álvaro Cunhal e o Prof. Rui Luís Gomes, do Movimento Nacional Democrático.

Com as jornadas do Maio de 62, os trabalhadores portugueses, revelando uma elevada e combativa consciência política e de classe, tomaram, com plena justiça, um lugar determinante no conjunto das forças sociais e políticas que combateram a ditadura fascista. E o PCP confirmou-se como força decisiva e indispensável na luta do povo português.

O “factor subjectivo”

O papel da classe operária na luta social e política do povo português não lhe está assegurado por direito divino ou destino próprio: a classe operária tem papel de vanguarda se o souber exercer e quando o exerce devidamente.

Esse papel não lhe caiu nos braços nos anos 60. Resultou da maturidade política ganha na sua condição social e desenvolvida na sua consciência social. E nesse amadurecimento da consciência social e política teve um papel decisivo o PCP.

Para uma força social exercer, em cada fase da História, um papel de primeiro plano na sociedade, não basta haver condições objectivas para que o exerça. É necessário que tenha as capacidades e condições para o exercer: aquilo que se designa por “factores subjectivos”9 .

Para esses factores subjectivos, foram decisivas as formas de organizações unitárias que os trabalhadores criaram no próprio desenvolvimento da luta antifascista: comissões de trabalhadores, comissões de unidade, comissões sindicais, comissões de greve, praças de jorna, etc..

Mas foi também decisivo poderem contar com um partido (o PCP) capaz de dar expressão política às suas aspirações e às formas de as poder realizar.10

Mas um partido que se propõe estar ao serviço dos interesses e aspirações dos trabalhadores, precisa, também ele, de reunir as condições (os “factores subjectivos”) que assegurem a sua capacidade de intervenção na luta política e social.

Em 1961-1962 o PCP culminara um profundo debate político e ideológico sobre a natureza do regime fascista e as condições necessárias ao seu derrubamento. As conclusões desse debate permitiram corrigir o desvio de direita, que nos anos de 1956-59 levara à ideia do derrubamento da ditadura fascista “por via pacífica”, pela sua desagregação e colapso automático, em resultado do fracasso da sua política e das suas dissensões internas11 .

O debate aprofundou também as questões relacionadas com a natureza de classe do Partido e as características da sua organização, com uma crítica e correcção das concepções anarco-liberais que corroíam a coesão e capacidade de intervenção política do Partido.12

Teve também grande importância, nesta conjuntura, a análise do PCP quanto à guerra colonial de Angola. Denunciando as tentativas de exploração "patrioteira" com que o governo fascista procurava apoios para a sua política colonialista e desafiando as ameaças contra quem se lhe opunha (que tinham efeito em certos sectores da Oposição), o PCP fez, desde logo, da luta contra o colonialismo e a guerra colonial uma das frentes da luta antifascista. Salientando que os povos das colónias portuguesas, com a sua luta, eram aliados do povo português na luta contra o regime colonial e fascista, alertava que era de esperar um agravamento da política fascista, da repressão, das dificuldades económicas, e da dominação imperialista em Portugal, com graves consequências para o povo português13 .

Esteve-se, em 1961-62, à beira de uma situação insurrecional. "Mas o aparelho de Estado fascista, designadamente a máquina militar, manteve a sua unidade e eficiência e as forças democráticas, incluindo o PCP, não dispunham de organização à altura".14

Fluxos, refluxos, conjunturas

O ano de 62 e as grandiosas lutas que o marcaram constituiu o momento mais alto da luta contra o fascismo antes do 25 de Abril.

Mas a luta revolucionária não se processa em linha recta e o seu êxito não depende apenas do acerto da política seguida pelas forças revolucionárias. Depende também, e de que forma, das condições objectivas – isto é, que não dependem da vontade e da acção das forças revolucionárias. Dependem das conjunturas, do conjunto de factores que marcam, em cada fase, a correlação de forças, tanto nacionais como internacionais.

Na segunda metade de 1962 o regime fascista recuperou a iniciativa. Intensificou a repressão, recuperou apoios internacionais, suprimiu mais ainda qualquer possibilidade de expressão legal de qualquer contestação ao regime.

Os anos de 1965-68 foram de forte refluxo na luta antifascista.

Mas, mesmo numa conjuntura desfavorável, os comunistas, os trabalhadores, a juventude e as massas populares não deixaram de lutar.

A luta reacende-se em 1968-69, na nova conjuntura criada com o afastamento de Salazar do poder. E é com base nas experiências da luta popular de massas, e do seu reconhecido impacto no ano de 62, que o PCP aponta o caminho da luta popular de massas como caminho contra a demagogia liberalizante de Marcelo Caetano. Foi nesse caminho que se criaram as condições para a torrente de lutas que, em 1974,15 levou ao derrubamento do governo caetanista, quando um novo aliado – o MFA – se juntou à luta popular de massas e ao movimento antifascista, alterando radicalmente a correlação de forças e criando uma situação revolucionária .

As conjunturas também se alteram com a luta.

 

Notas

1 “Calcula-se que tenham participado nas manifestações de rua, de Lisboa e Porto, 500 mil pessoas”. “Depois, como protesto contra a burla eleitoral, ao apelo do PCP, cerca de 60.000 operários industriais e agrícolas fizeram greves intermitentes e paralisações parciais”. (Relatório do CC ao VI Congresso do PCP).

2 Uma das medidas tomadas pelo regime foi a alteração da Constituição para pôr fim à eleição directa do Chefe de Estado, a fim de “impedir um golpe de Estado constitucional”...

3 O PCP, antecipando-se aos acontecimentos, já no V Congresso (1957) alertara para o perigo de envolvimento do país em perigosas guerras coloniais, apelando à luta do povo português contra a política colonial fascista. Ver “Resolução do V Congresso do PCP sobre o reconhecimento do direito à independência dos povos das colónias portuguesas”.

4 Nos anos de 1956-58, e designadamente durante a campanha eleitoral de 1958, desenvolveram-se na Oposição democrática concepções legalistas que radicavam na esperança de uma passagem à democracia por uma queda automática do regime fascista, incluindo por uma vitória eleitoral.

5 Em 1 de Janeiro de 1962 houve uma tentativa de ocupação do Quartel de Beja, lançada sem ligação ao movimento de massas e rapidamente dominada.

6 Ver «O Militante» nº 257, de Março/Abril, no artigo "A crise académica de 1962".

7 O regime fascista, procurando denegrir o significado e importância destas lutas, punha a correr dichotes dizendo que os trabalhadores reivindicavam "café e bagaço" e que os estudantes brincavam "aos polícias e ladrões".

8 Em «O Militante» clandestino de Julho de 1964 fez-se uma aprofundada análise do 1º de Maio após as lutas de 1962.

9 Ver neste número de «O Militante» o artigo "A importância do factor subjectivo".

10 Os comunistas tiveram o grande mérito de dinamizar, organizar e orientar as lutas nesta conjuntura. Mas essa intervenção, que permitiu dar nova dimensão à luta antifascista, não teve determinação "aproveitacionista" ocasional: foi expressão das concepções e da prática dos comunistas na luta social e revolucionária.

11 Para a discussão destes temas no Partido, deram importante contribuição, além de vários artigos em «O Militante», documentos como “Três questões de actualidade” (1960), “O desvio de direita na orientação do Partido” (1961) e “O anarco-liberalismo no trabalho de direcção” (1960).

12 Nesse debate se iniciou também o trabalho que culminou no VI Congresso (1965) com a aprovação do Programa do Partido para a Revolução Democrática e Nacional e que permitiu ao PCP o papel decisivo que desempenhou nas vitórias alcançadas pelos trabalhadores e o povo português no processo revolucionário iniciado com o 25 de Abril.

13 Já em Setembro de 1960 a Comissão Política alertava: “O governo fascista de Salazar recusa-se cegamente a reconhecer a realidade do mundo em que vivemos”. “A política colonial do governo e em especial a sua preparação de guerras coloniais não só constitui um crime contra os povos coloniais, como um crime contra o povo português e a nação portuguesa, pois ameaça sacrificar milhares de jovens em guerras injustas e representa para Portugal a ruína económica” – “Três problemas de actualidade”.

14 Relatório do CC ao VI Congresso do PCP.

15 Nos primeiros meses de 1974 um novo grande fluxo de luta dos trabalhadores se registou. Em Janeiro: Cometna, Robialac, Dyrup, Sorefame, Electro-Arco, BIS, Comportel, Rossel, GIL, Melka, CIM, Tudor, Dialap. Em Fevereiro: Fundição de Oeiras, Sorefame, Cipan, Dialap, Metropolitano, Vitralisa, Casa Nery, Duarte Ferreira, vidreiros da Marinha Grande, Arsenal do Alfeite. Este poderoso movimento grevista prosseguiu até ao 25 de Abril.

«O Militante» - N.º 258 - Maio/Junho de 2002