Estórias e Emoções de uma vida de luta |
Nota da editora
«Recordar é viver, diz-se, só que recordar pequenas ou grandes coisas, agradáveis ou desagradáveis, duma vida já um tanto longa e recheada de acontecimentos tão diversificados, não me tem surgido como tarefa fácil.» Com estas palavras inicia Joaquim Gomes estas páginas de memórias, e o que desde logo se pode dizer é que, apesar de não ter sido «tarefa fácil», ainda bem que o fez: elas constituem mais um precioso contributo - a juntar a outros que têm dado corpo a uma política editorial dirigida nesse sentido - para um melhor conhe-cimento e compreensão do que foi a ditadura e das linhas com que se teceram a resistência e a luta dos comunistas pela liberdade e pela democracia. Conhecimento e compreensão particularmente úteis para uma juventude para quem os tempos do fascismo evocam uma realidade cada vez mais longínqua no tempo, mas cujos ensinamentos e repercussões estão ainda bem presentes.
Páginas de memórias, pois. Mas declaradamente voltadas para uma vertente muitas vezes obscurecida à sombra dos aspectos essencialmente políticos: a vida, real e concreta, dos que lutavam na clandestinidade, o dia-a-dia dos revolucionários que - não fujamos às palavras justas - heroicamente assumiram correr os riscos de um quotidiano feito de sacrifícios e de renúncias, permanentemente ameaçado por perigos e armadilhas que alguns pagaram pelo preço mais alto - a própria vida.
E páginas de memórias, sublinhe-se, escritas por alguém com particular experiência e autoridade para o fazer. Nascido em 1917, Joaquim Gomes torna-se aprendiz na industria vidreira com apenas seis anos de idade. As dificuldades de uma vida dura não lhe permitem prolongar os estudos para além da 4.a classe. E é ainda também muito novo, durante a década de trinta, que inicia a sua actividade partidária, fazendo parte do Comité Local da Marinha Grande. Em 1952 passa à clandestinidade e entra para o Comité Local de Lisboa. Em 1955 torna-se membro suplente do Comité Central e dois anos depois passa a efectivo. Em 1963 integra a Comissão Executiva do Comité Central e posteriormente a Comissão Política. Foi por três vezes preso pela polícia política, e por duas vezes fugiu da cadeia. Depois do 25 de Abril e até ao XV Congresso, em 1996, mantém os seus cargos no Comité Central, no Secretariado e na Comissão Política, tendo sido igualmente deputado à Assembleia da República pelo Distrito de Leiria entre 1976 e 1987.
Modesto e discreto, Joaquim Gomes não o diz nem o sugere, mas poucos como ele estariam em condições de nos oferecer estas páginas que - tal como outras protagonizadas por outros camaradas - se identificam e fazem parte indissociável da vida e da luta do Partido.
Páginas feitas de recordações umas vezes comoventes, outras dramáticas, outras ainda eivadas de fina ironia, mas sempre plenas de sensibilidade e humanismo, apresentando como naturais e simples situações e decisões que só poderiam ser fruto de uma enorme coragem e abnegação, reveladoras da vontade indomável e da firmeza dos militantes comunistas na clandestinidade em servir o povo e a pátria, ajudando de forma decisiva a conseguir o que, num inesquecível dia de Abril, finalmente foi conquistado.
Introdução
Recordar é viver, diz-se, só que recordar pequenas ou grandes coisas, agradáveis ou desagradáveis, duma vida já um tanto longa e recheada de acontecimentos tão diversificados, não me tem surgido como tarefa fácil. Para além do mais, resta saber se se pode garantir a fidelidade dos factos recordados partindo somente daquilo que a memória conserva. Ainda mais por estar convencido de que a memória de cada um é capaz de ser de certo modo tendenciosa, ou seja, nuns casos os registos podem ser maioritariamente agradáveis e cheios de coisas boas, noutros podem ser exactamente o contrário de acordo com o berço e a manjedoura que cada um encontrou quando desembarcou neste mundo. Além de que há coisas que as recordo por as ouvir contar. Por isso mesmo é que fiquei a saber que, quando cá cheguei, tive logo que começar a tratar da vida, até no que toca à mama, pois se quis apanhar alguma tive que me pendurar numa vizinha, a Ti Júlia, a quem mesmo com muito atraso quero agradecer, até porque a avaliar pelas suas filhas, o leite não só era abundante, mas de boa qualidade. Muitas vezes me tenho perguntado se o espírito de solidariedade e boa vizinhança que sempre me acompanharam não começou exactamente nessa altura.
Como se verificará ao longo das linhas que se vão seguindo, as dúvidas, não apenas quanto à fidelidade daquilo que a memória conserva mas também quanto à sua utilidade, são muitas, ou seja, com frequência me vou interrogando: será que isto interessa seja a quem for? E se tenho tantas dúvidas, porque insisto? É porque, apesar de tudo, me dá gosto fazê-lo, e por isso continuo. De qualquer modo, é bom esclarecer que se sinto necessidade de recordar esta primeira fase da minha vida, até ao início do meu trabalho como aprendiz de operário vidreiro, é porque ela foi bastante dura.
Em geral, nos meios rurais ou semi-rurais, como na aldeia onde nasci, as crianças com quatro ou cinco anos já tinham que ajudar nos trabalhos do amanho das terras, guardar e tratar dos animais domésticos, carregar dos pinhais lenha e caruma que assegurasse a fogueira e forno da broa acesos, sem o que não se podia garantir a dieta diária, nem combater o frio no Inverno. Perante esta realidade de todos os dias até seria lógico concluir que, com o início do trabalho de aprendizagem de uma profissão, se podia alterar para melhor a vida dos miúdos. No meu caso concreto e na maioria dos que conheci as coisas não se passavam assim. Na prática, os trabalhos caseiros tinham de fazer-se na mesma, pelo que o trabalho na fábrica aumentava substancialmente as obrigações da miudagem.
A descrição com alguns pormenores da minha trajectória como aprendiz de operário vidreiro, sendo um retrato bastante amarelecido pelo tempo, acaba no entanto por ser um testemunho duma época em que na indústria do vidro, como em muitas outras, a aprendizagem duma profissão começava quando ainda se era criança. Assim aconteceu comigo quando entrei na primeira fábrica.
Para tornar mais fácil a leitura destas recordações, admitindo que alguém vai ter a coragem de as ler, decidi dividi-las em dois grandes períodos: o primeiro evocará algumas estórias desde criança passando pelo primeiro emprego até à adolescência e ao ingresso na Federação das Juventudes Comunistas; o segundo recordará a chamada ao Partido e as tarefas que se lhe seguiram desde a passagem à clandestinidade até ao 25 de Abril.
(*) Da Nota da editora e Introdução do livro Estórias e Emoções de uma vida de luta, Editorial «Avante!», Lisboa, Agosto de 2001.
«O Militante» - N.º 254 - Setembro/Outubro 2001