Servições de informações
Que (des)caminhos?
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Carlos Gonçalves
Membro do Comité Central do PCP |
O chamado Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) foi criado pela Lei 30/84 de 5 de Setembro, governava então o “bloco central”. Era Mário Soares o Primeiro-Ministro e seu vice e ministro da Defesa Mota Pinto, então presidente do PPD/PSD. Registe-se o facto para uma melhor compreensão das convergências efectivas que, por acção e omissão, PS e PSD têm demonstrado ao longo dos anos nesta matéria.
O Sistema de Informações da República Portuguesa
A Lei 30/84, Lei Quadro do SIRP, mereceu a oposição do PCP, nomeadamente pelo vazio efectivo de controlo e fiscalização democráticos que instituía, mas o SIRP andou em frente, apoiado no PS, no PSD e no CDS e empurrado pela visita oficial de Soares a Washington na Primavera desse ano, em que a CIA se propôs colaborar na formação dos Serviços e seus agentes.
A Lei Quadro do SIRP definiu três Serviços de Informações: o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), para a “produção de informações necessárias a garantir a independência nacional e a segurança externa do Estado português”, dependente do Primeiro-Ministro, o Serviço de Informações Militares (SIM), para a “produção de informações militares necessárias ao cumprimento das missões das Forças Armadas”, dependente do ministro da Defesa, e o Serviço de Informações de Segurança (SIS), para a “produção de informações destinadas a garantir a segurança interna e necessárias a prevenir a sabotagem, o terrorismo, a espionagem e a prática de actos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruír o Estado de direito constitucionalmente estabelecido”, dependente do ministro da Administração Interna.
A implementação do sistema começou durante a crise do Governo PS/PSD, mas foi com o X Governo Constitucional, após a vitória relativa do PSD nas legislativas, já com Cavaco Silva, que foi concretizada.
O SIS entrou em funcionamento em 1986. Ladeiro Monteiro, vindo das informações de Angola durante a guerra colonial, assumiu a direcção e promoveu nos anos seguintes actividades de infiltração, contra-informação e provocação ilícitas, em benefício das opções partidárias dos governos do PSD.
O SIM herdou a estrutura e os quadros da Divisão de Informações do Estado Maior General das Forças Armadas (DINFO) e herdou também as ilegalidades e abusos, como as comprovadas ligações ao terrorismo dos chamados “Grupos Autónomos de Libertação” (GAL) contra a ETA e a luta do povo basco.
O SIED, apesar de regulamentado em 1985, nunca foi implementado, sendo extinto em 1995 e tendo o SIM acumulado ilegalmente as suas funções 10 anos.
A Lei Quadro do SIRP instituiu o Conselho Superior de Informações, “orgão interministerial de consulta e coordenação em matéria de informações”, presidido pelo Primeiro-Ministro e dispondo de uma Comissão Técnica a cujo secretário-geral competia “assegurar apoio funcional”.
Essa responsabilidade foi atribuída ao general Pedro Cardoso, ideólogo do sistema de informações desde finais dos anos 50 e sua “eminência parda” desde 74, primeiro da DINFO, depois do projecto falhado do Serviço de Informações da República (SIR) e finalmente do SIRP, desde 1986 até hoje.
O “controlo dos serviços de informações”, foi atribuído ao Conselho de Fiscalização, composto por 3 cidadãos eleitos pela Assembleia da República por voto secreto e maioria de dois terços, ou seja, eleitos obrigatoriamente pelo PS e o PSD, o que implicou à partida, como tantas vezes foi assumido pelo PSD e pela “comunidade de informações”, a absoluta e inapelável exclusão do PCP.
Mas, para além deste aspecto claramente não democrático, resultou ainda da Lei Quadro o vazio real de capacidade de fiscalização e controlo. De facto, ao Conselho só era garantido o acesso a relatórios de actividade elaborados pelos próprios Serviços e a elementos suplementares fornecidos pelo respectivo ministro e estava-lhe negada a possibilidade de inspecção sem pré-aviso, essencial para credibilizar o objectivo estatuído.
O SIRP no “Cavaquismo”
Nos 10 anos de Governos do PSD são muitas as ilegalidades, que se conhecem ou deduzem, cometidas pelos Serviços de Informações e serão seguramente ainda mais as que nem sequer se adivinham.
Quanto ao SIM/DINFO, para além do caso GAL, foram as fichas de cidadãos de esquerda nas mãos dum “informador”, a organização ilegal de bases de dados, a utilização de ficheiros e escutas da Polícia Judiciária, a vigilância sobre o Procurador Geral da República, etc.
Quanto ao SIS os exemplos são inúmeros: a espionagem do Presidente do Tribunal de Contas, de partidos políticos, sindicatos, agricultores, estudantes, polícias, a “fichagem” de 50.000 cidadãos, o relatório “perdido” sobre “bandos de jovens negros” e um outro sobre “sector têxtil e implicações na segurança interna”, as infiltrações, os cenários fantásticos da “insurreição da Ponte”, etc.
E tudo isto implicitamente fundamentado pelo general Pedro Cardoso e com a cobertura de Cavaco Silva, Dias Loureiro e diversos governantes do PSD.
Neste quadro, por todos os meios possíveis, o PCP travou a batalha política da denúncia e exigência que os Serviços de Informações respeitassem a Lei.
Em Julho de 1994, a realidade acabou por se impor, o próprio Conselho de Fiscalização, confessada a sua impotência para verificar a conformidade à lei da actuação dos Serviços de Informações, e dando expressão aos sentimentos nacionais a este respeito, acabou por se demitir.
Mas o PSD não arrepiou caminho, antes decidiu utilizar a maioria absoluta de que dispunha para consumar alterações muito negativas à Lei Quadro do SIRP.
A Lei 4/95 de 21 de Fevereiro acabou com o SIED, passando o SIM a Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e Militares (SIEDM) e acumulando as competências dos dois serviços.
SIS e SIEDM passaram para a dependência do Primeiro-Ministro e o secretário-geral da Comissão Técnica tornou--se o verdadeiro “pivot” dum SIRP mais concentrado e centralizado.
Para facilitar a utilização dos Serviços fora do quadro constitucional, as missões foram tornadas mais vagas. SIS e SIEDM passaram a produzir informações que, em vez de “necessárias a garantir”, apenas “contribuam para a salvaguarda”, respectivamente da segurança interna ou da independência nacional.
Aumentou a impunidade e diminuíu a fiscalização democrática dos Serviços de Informações, particularmente dos respectivos Centros de Dados.
O PSD confirmou assim a sua visão autoritária e antidemocrática do SIRP, que, em vez de destinar à defesa do Estado de direito, transformou em para-polícia política, instrumento de perseguição das forças que legitimamente se opuseram ao seu Governo e às suas políticas.
E depois o PS/Guterres
Nos últimos tempos do “cavaquismo” o PS zurziu o PSD pela sua política para os Serviços de Informações, mas, uma vez a governar, o engenheiro Guterres não foi longe nas medidas que tomou.
Por iniciativa própria mexeu o menos possível nas estruturas directivas do SIRP, deixando aliás até hoje o general Pedro Cardoso, com 76 anos, nas funções decisivas que exerce.
Alterou a Lei Quadro, pela Lei 15/96 de 30 de Abril, mas sem ao menos repor a situação anterior às emendas do PSD, nem sequer no que o PS tinha criticado.
A Lei 15/96 limitou-se a duas linhas de alterações: uma no sentido de reforçar as competências do Conselho de Fiscalização, mas de forma muito insuficiente, mantendo-se a composição e as normas de eleição e a impossibilidade de inspecção aos Serviços sem aviso, outra instituindo a audição prévia em sede parlamentar dos seus indigitados directores.
Aliás, num evidente incumprimento das promessas do PS nesta matéria, o SIRP continua sem Conselho de Fiscalização, o que acontece há 5 anos, fruto de uma objectiva convergência negativa PS/PSD que é incontornável e inaceitável.
E não se pode considerar que os cerca de três meses em que, já este ano, sob pressão duma proposta legislativa do PCP para desbloquear a situação, esteve eleito um Conselho de Fiscalização, tenham sequer minorado a ilegitimidade do continuado funcionamento dos Serviços sem qualquer controlo.
Por outro lado, o PS não conseguiu tranquilizar a opinião pública quanto à conformidade da acção do SIRP com o quadro constitucional.
É certo que diminuiram sensivelmente as referências a acções ilegais do SIS, mas, no caso do SIEDM, o povo português está confrontado com gravíssimas e fundadas suspeitas de orientações ilegais do ex-ministro Veiga Simão para que fossem espiadas altas instâncias militares.
E este facto, bem como a gravíssima revelação duma lista de funcionários do SIEDM, a juntar às demissões do respectivo director e do ministro, são - é incontornável - da responsabilidade do Primeiro-Ministro, pela sua competência pela política de todo o Governo, pelas suas responsabilidades directas relativamente aos Serviços de Informações, às normas de segurança documentais e à divulgação de semelhante lista.
Neste quadro, por responsabilidade do Governo PS/Guterres, até os tímidos passos de certos socialistas e de responsáveis do SIRP, no sentido da sua conformidade com o Estado de direito constitucional, estão votados ao fracasso, arrastando-se os Serviços de Informações numa crise larvar de onde, a todo o momento, pode eclodir uma nova e imprevisível bolha infecciosa de consequências eventualmente desastrosas para o regime democrático.
Propostas e caminhos
A situação do SIRP continua assim a ser motivo de grande preocupação, exigindo uma intervenção política e institucional do Partido que viabilize novas soluções conformes à Lei e qualificadoras da democracia.
Desde logo é necessário tornar claro que, em regime democrático, não pode haver Serviços de Informações sem controlo e fiscalização democráticos, pelo que, das duas uma, ou bem que se resolve o problema do efectivo funcionamento do Conselho de Fiscalização, ou então há que exigir a suspensão dos Serviços.
O PCP defende que, para ultrapassar de vez as guerrilhas e convergências negativas de PS e PSD, o Conselho de Fiscalização seja eleito por maioria simples, tenha uma composição alargada para responder às necessidades e um poder de fiscalização mais vasto, nomeadamente a inspecção dos Serviços sem pré-aviso.
O PCP não pode aceitar, sob nenhuma forma, qualquer norma antidemocrática que vise a sua exclusão dos orgãos de fiscalização do SIRP ou das maiorias necessárias à sua eleição.
O PCP entende que o Estado português carece de Serviços de Informações mas a sua actividade deve limitar-se à recolha das informações estritamente necessárias à garantia dos princípios e direitos constitucionalmente estabelecidos, devendo ser expurgadas da Lei Quadro do SIRP formulações ambíguas ou excessivamente abrangentes, relativas às respectivas funções e competências.
E são indispensáveis no texto da Lei, na formação dos respectivos agentes e ao nível técnico-orgânico, normas e medidas que, de uma vez por todas, previnam a utilização partidarizada e ilegítima dos Serviços de Informações.
É necessário, também nesta matéria, defender, qualificar e aprofundar a democracia política.
«O Militante» Nº 241 - Julho / Agosto - 1999