Globalização
A ditadura do dinheiro
|
José Goulão
Jornalista |
Globalização é a palavra chave
da modernidade. Repete-se e elogia-se como a grande conquista do
homem principalmente durante a última década, uma espécie de
caminho de redenção aberto para o bem de todos, que nos levará
ao paraíso terrestre onde a abundância se generalizará
através da solidariedade intrínseca do ser humano, do
desenvolvimento científico e da ordem controlada por
instituições internacionais.
Globalização é, no entanto, a universalização
da mistificação ao serviço da ditadura do dinheiro.
O conceito de globalização
O conceito de globalização inspira-se numa interpretação
oportunista, primária e generalizadora da teoria da «aldeia
global» exposta pelo professor e sociólogo canadiano Marshall
McLuan. Segundo essa teoria, o desenvolvimento acelerado dos
meios de comunicação social e das tecnologias de
telecomunicação transformam o mundo numa «aldeia global» onde
todos sabemos de todos praticamente em tempo real - em directo e
ao vivo.
Se recuarmos alguns anos concluiremos que a insistência na
palavra globalização começou a notar-se por alturas da Guerra
do Golfo, quando todos fomos prendados com essa maravilha da
nossa existência que foi «a guerra em directo». A punição
exemplar de Saddam Hussein feita pelos justiceiros da chamada
«comunidade internacional» teria sido testemunhada pelos
cidadãos do mundo através da pioneira e benemérita CNN. Uma
guerra muito bem explicada pelos assessores de imprensa do
Pentágono, praticamente sem mortos nem destruição, animada por
feéricas habilidades e, quando necessário, por efeitos
artificiais conseguidos pela arte dos computadores de última
geração.
O resultado deste primeiro teste da «aldeia global» foi um
desastre informativo. Nunca o homem dispôs de tão
sofisticados meios técnicos para cobrir um acontecimento e
raramente terá ficado a conhecer tão pouco de um conflito de
grande envergadura.
A «guerra em directo» foi uma grande acção de propaganda
integrada no arranque da «nova ordem internacional», explicada
pelo presidente dos Estados Unidos da América, George Bush, no
discurso proferido a seguir à rendição do Iraque no Koweit.
Foi em 7 de Março de 1991.
Primeira fase da «nova ordem internacional»
A «nova ordem internacional» então anunciada traçou os
primeiros contornos da globalização. O Muro de Berlim ruíra; a
União Soviética desmoronara-se; a Rússia manteve o lugar da
URSS no Conselho de Segurança das Nações Unidas por decisão
arbitrária - e tutelar - da Administração norte-americana.
A operação militar no Golfo desenrolara-se em nome das Nações
Unidas, mas os trâmites determinantes foram impostos pelos
Estados Unidos da América num mundo desconcertado pela vertigem
dos acontecimentos e onde muitos estadistas procuravam adaptar-se
à nova relação de forças. Para impor o seu ritmo e as suas
conveniências, os Estados Unidos violaram a Carta das Nações
Unidas ignorando mecanismos que determinavam um funcionamento
colegial do comando militar da operação. A ONU
transformava-se, assim, num instrumento dos Estados Unidos.
George Bush definiu a nova ordem como «multipolar», mas não
ficaram dúvidas de que, com o desaparecimento da União
Soviética e com a maneira como foi imposta a chamada
«coligação internacional» contra o Iraque, o mundo tornara-se
«unipolar».
A «nova ordem internacional» passou a ser a ordem
política, económica e militar dos Estados Unidos.
Um conjunto de organizações internacionais
Washington exportou um regime e utiliza um conjunto de
organizações internacionais que actuam ao sabor dos interesses
do grande complexo militar e industrial que governa os Estados
Unidos da América. O edifício assim formado integra
essencialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Mundial (BM), as Nações Unidas, a NATO, a Organização para a
Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) e a Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE). São
indiscutivelmente instituições de carácter multinacional, mas
o seu funcionamento obedece à necessidade de impor um conjunto
de normas que traduzem o código de bom comportamento exigido à
generalidade dos países. Os que não o acatarem sujeitam-se,
como os exemplos comprovam, a acções militares e sanções
económicas. O nível das contradições entre os interesses dos
Estados Unidos e os de outros países com alguma intervenção à
escala mundial não é suficiente para abalar o funcionamento das
estruturas da ordem unipolar. Tanto mais que o exercício real do
poder internacional está cada vez mais nas mãos dos grandes
conglomerados empresariais.
O "célebre" AMI
A principal tentativa para institucionalizar a globalização
começou a ser desenvolvida, secretamente, através da OCDE,
organização que integra actualmente 29 países, entre os quais
Portugal. A elaboração de um Acordo Multilateral de
Investimentos (AMI) foi interpretada como o passo decisivo para
criar uma «Constituição Mundial» capaz de evitar os entraves
à livre circulação de capitais e de matérias primas.
A discussão do AMI foi travada por iniciativa do actual governo
francês, que manifestou sensibilidade às acções cívicas de
âmbito internacional que denunciaram as negociações e os
efeitos gravosos que poderão vir a ter nos direitos dos governos
nacionais e, em geral, dos cidadãos. Devido, no entanto, às
necessidades intrínsecas do próprio sistema, a tendência para
encontrar soluções alternativas que conduzam ao mesmo resultado
continua viva. Além disso, o próprio funcionamento do FMI e
do Banco Mundial, condicionando a soberania dos Estados numa
situação geral em que se aprofundam os desníveis entre meia
dúzia de nações ricas e mais de centena e meia de países
pobres, estabelece um sistema de dependências políticas e
económicas que conduz, por via não declarada, aos resultados
pretendidos pela discussão do AMI.
O sistema de dominação financeira e económica, onde, segundo a
própria ordem neoliberal globalizada os Estados submetem-se cada
vez mais às necessidades de conglomerados empresariais
tentaculares, possui e utiliza os seus braços militares.
É neste domínio que se afirma prioritariamente a unipolaridade
da globalização. À transnacionalidade dos grandes impérios da
especulação e dos negócios - devido à ausência de barreiras
aos fluxos de capitais e ao funcionamento interligado das grandes
praças financeiras - corresponde um controlo militar exercido
inequivocamente pelos Estados Unidos da América. Através da
ONU, em áreas de intervenção escolhidas segundo os interesses
directos do complexo militar industrial norte-americano; através
da «nova» NATO, no teatro europeu e envolvente.
A guerra nos Balcãs
O tipo de intervenção da Aliança Atlântica nos Balcãs
corresponde a um avanço qualitativo do controlo norte-americano
sobre a doutrina da NATO e sobre os assuntos militares no
próprio espaço europeu. Depois do alargamento a Leste - à
Polónia, à Hungria e à República Checa, a que se seguirá,
provavelmente, a expansão para repúblicas do Báltico - a
Aliança Atlântica impõe formas próprias de presença na
Península Balcânica sem contestação dos países europeus.
A argumentação utilizada para a agressão contra a
Jugoslávia é primária e até absurda, o que traduz a
incapacidade de resposta das principais nações europeias à
violência da afirmação norte-americana. Além da Albânia
- país estratégico e em situação caótica - a entidade mais
protegida pela guerra nos Balcãs é o chamado Exército de
Libertação do Kosovo, por sinal financiado por sectores do
radicalismo islâmico que Washington diz mais temer e combater.
A agressão militar iniciou-se, além disso, no momento em que os
estadistas da União Europeia se enredavam nos seus próprios
problemas para sustentar uma entidade que continua a ser
exclusivamente económica e que não cuida dos direitos
políticos, sociais e cívicos dos seus cidadãos. Acresce que a
intervenção nos Balcãs se desenvolveu na fase em que o Euro
dá os primeiros passos. Mensagem: a lei do dólar prevalece. O
momento escolhido em Washington para o ataque à Jugoslávia foi
humilhante para a União Europeia.
A submissão da Europa
O quadro definido pelos últimos desenvolvimentos no interior da
NATO e da União Europeia estabelece que, fazendo parte do
sistema económico mundial globalizado com uma significativa
margem de influência, os Quinze estão, porém, submetidos
ao sistema de controlo militar estabelecido e comandado pelos
Estados Unidos.
Outro instrumento de domínio, a moeda, está claramente
dependente do controlo militar. O dólar é a moeda da
globalização. A «moeda única» é ainda o dólar, como
se comprova, simbolicamente, pelo facto de o grande aliado de
Washington na Europa, o Reino Unido, se manter de fora da moeda
europeia. Não é apenas uma questão de tradição e de amor à
libra.
Comunicação social e cultura
A globalização económica, militar e política tem
correspondência a nível da comunicação social e da cultura. A
mensagem dominante, cada vez mais simples, directa e primária,
é amplificada e acelerada através de sofisticados meios
tecnológicos de emissão para produção de um pensamento
padronizado, único, acrítico que, no limite, reduz a
contestação a simples murmúrios.
A globalização imposta pela ditadura do dinheiro traduz-se
por uma ideologia única, um padrão único de democracia, um
pensamento único, uma cultura única. Quem argumenta contra
o sistema assim estabelecido arrisca-se a ser transferido
gradualmente para os grupos dos marginais, proscritos ou mesmo
subversivos. Neste cenário, continuam válidos os sistemas de
catalogação da guerra fria, ainda que com variantes adaptadas a
formas de expressão entretanto desenvolvidas. No quadro do
pensamento único existe, às vezes, uma tolerância paternalista
por correntes ditas «alternativas» que ajuda a exibir uma
magnanimidade pluralista; essas correntes, políticas ou sociais,
sujeitam-se porém à coacção e à repressão logo que
extravasem as regras do jogo impostas por quem manda.
Um padrão único
O poder representativo da democracia oficial, esse localiza-se
geometricamente ao «centro». Os governos são sempre de
«centro-direita», de «centro-esquerda», expandindo-se assim
por todo o mundo, por vezes em situações caricatas e
absolutamente desajustadas de tradições políticas, culturais e
étnicas. A inspiração do padrão único de democracia é o
sistema dito bipartidário dos Estados Unidos da América.
Olhe-se em redor e observe-se no que se transformou a
«alternância» de poder. Um quadro que, naturalmente, é o
suporte político do sistema económico globalizado no qual, como
o processo de negociação do AMI revelou, os aparelhos de Estado
e os governos se submetem cada vez mais às necessidades dos
impérios mundiais dos negócios e da especulação.
Informação e propaganda
A mundialização da informação, principalmente através da
rede de comunicação instantânea que é a televisão, é um
pilar do pensamento único e da cultura única massificada,
praticamente reduzida ao culto da indigência intelectual.
Da «guerra em directo» no Golfo passou-se, devido ao modo como
as autoridades jugoslavas estudaram os efeitos dessa
experiência, para a mistificação pura e simples na crise
balcânica, onde não faltam formas cruéis de chantagem
emocional. Os limites entre a informação e a propaganda
desapareceram e os grandes produtores de informação de guerra
são hoje «os relações públicas fardados» do Pentágono,
durante as suas regulares conferências de imprensa. Cada vez é
mais alarmante a falta de sentido crítico de alguns jornalistas
perante os sistemas de propaganda montados em cenários de
guerra. Recomenda-se vivamente, nos tempos que correm, a
observação atenta do filme «Manobras na Casa Branca». Tem a
virtude de nos explicar como estamos indefesos perante a
sofisticação de formas de manipulação que permitem fabricar e
ocultar realidades, escrevendo-se assim a História ao sabor dos
interesses militares e das capacidades tecnológicas e de
comunicação dos mais poderosos.
Não é apenas em momentos de guerra que funciona o pensamento
único. Os padrões de leitura dos acontecimentos mundiais são
definidos pelas televisões de âmbito mundial e reflectem a
eficácia da mensagem primária, maniqueísta e tendenciosa que
corresponde, em cada momento, aos interesses económicos,
militares e políticos do sistema de poder real dos Estados
Unidos. O qual, como se sabe, condiciona a própria Casa Branca e
outros santuários de decisão. Por isso, famosos e mediáticos
estadistas estão hoje reduzidos a produtos de cosmética,
plastificados, pregadores da mensagem única no mesmo tom em que
se promovem automóveis, ou mesmo detergentes.
A informação é acompanhada pela cultura da aculturação. A
arte, a literatura, a criatividade estão bem vivas, estão na
essência do Homem, representam o lado humanista, sensível,
capaz de reflectir que ainda resiste. Mas a qualidade é cada vez
mais marginal. A mensagem dominante é simples, directa,
estupidificadora, redutora, induzindo reacções automáticas que
Pavlov identificou já lá vão muitos anos. É a mensagem que se
repete, que ecoa, que embrutece, que chega até a instilar
dúvidas e a coagir, quase a derrotar por fadiga e por
contumácia, espíritos dispostos a não se deixar abater.
A pressão é muito grande porque assenta na sofisticação dos
meios utilizados numa era em que o fabuloso desenvolvimento das
telecomunicações - negócio dos mais florescentes da
globalização - transformou a mensagem numa arma culturalmente
letal quando é utilizada ao serviço dos interesses dos mais
ricos e mais poderosos. E são os mais ricos e mais poderosos que
manipulam o mundo das telecomunicações.
Realidades gritantes e penosas
Essa manipulação esconde, naturalmente, as realidades mais
gritantes e penosas dos rastos sociais que a globalização deixa
no mundo. O controlo dos impérios económicos e financeiros
sobre governos, populações e recursos naturais aprofundou
gravemente as injustiças no planeta durante os últimos 20 anos,
mas disso raramente se fala nas torrentes de mensagens que correm
mundo em cada segundo. Um sistema realmente perverso, como se
ilustra, por exemplo, pelo facto de cidadãos e até estadistas
africanos apelarem aos seus meios de comunicação para falarem
mais de África e menos de Monica Lewinski.
Apelos interessantes mas inócuos, porque a batalha é
extremamente desigual. Mesmo os estudos internacionais elaborados
por respeitados departamentos das Nações Unidas e por dedicadas
organizações humanitárias são silenciados, naturalmente
porque esta é a realidade real e não a realidade fabricada, por
exemplo, segundo os métodos ilustrados no recomendado filme
«Manobras na Casa Branca».
Poucos cidadãos do planeta saberão, por exemplo, que a soma
das três maiores fortunas pessoais do mundo é superior ao
Produto Interno Bruto dos 48 países mais pobres - que
representam um quarto dos membros da ONU. Muitos ignorarão
também que em mais de 70 países os rendimentos pessoais
são inferiores aos de há 20 anos, que 30 milhões de pessoas
morrem de fome anualmente, que metade da população do mundo é
obrigada a sobreviver com menos de 300 escudos por dia. Em 1960,
revela Ignacio Ramonet em Le Monde Diplomatique, 20 por cento
da população que vivia nos países mais ricos tinha um
rendimento 30 vezes superior aos 20 por cento mais pobres. Em
1995, esse fosso aumentou para 82 vezes, quase triplicou de
amplitude.
As Nações Unidas asseguram que uma verba da ordem dos 13
mil milhões de dólares anuais seria suficiente para suprir as
necessidades básicas de alimentação, água potável,
educação e cuidados de saúde de toda a população do mundo.
Trezes mil milhões de dólares, cerca de 2500 milhões de
contos, é o valor de meia dúzia de mísseis de cruzeiro e
aviões invisíveis. Treze mil milhões de dólares é a verba
que nos Estados Unidos e na União Europeia se gasta anualmente,
por exemplo, em perfumes.
Eis a globalização.
«O Militante» Nº 240 - Maio / Junho - 1999