Avelino Gonçalves
Ministro do Trabalho
do 1º Governo Provisório
(15.5.74 - 13.7.74)
Pelo 25 de Abril, no 25 de Abril, na sequência e em consequência do 25 de Abril, muita gente fez muita coisa. Coisas muitas vezes inesperadas, inimagináveis ou ao menos até aí inimaginadas, muita coisa corajosa, generosa, criadora, inesquecível.
Entre elas recordo um pequeno filme que correu o país. Com um rapazinho regando e plantando cravos vermelhos, com um pérfido reacionário cortando a flor, bombardeando-a, destruindo-a, mas em vão. Por montes e vales, altas serras e calmas planícies, os cravos cresciam, o verde dos campos salpicava-se do vermelho dos cravos, a Revolução alastrava, natural e irresistível, estuante de vida, plena de promessas.
Recordo esse pequeno filme como recordo mil outras pequenas maravilhas. E creio que esse filme - cujo realizador, lamento-o, não soube nunca quem fosse - é cheio de um simbolismo apropriado, seguro, ajustado à situa- ção. Primeiro porque foi de facto o que fizemos: agarrámos a liberdade e alegre e generosamente, e teimosamente, plantámo--la em todos os quadrantes da vida, pelo país fora. Segundo, porque de facto outros, sinistra, mas também teimosamente, tentaram por muitos e poderosos meios, roubar-nos a liberdade e enterrar as esperanças.
Com segurança podemos dizer hoje, passados 25 anos, que o não conseguiram. Não quer isso dizer que o 25 de Abril se cumpriu integralmente, que tudo mudou e definitivamente em Portugal, que podemos descansar à sombra das conquistas realizadas. Não, não podemos, não pudemos nem poderemos nunca!
É difícil, muito difícil falar do 25 de Abril. É difícil reconhecer que factos tão singulares, que um tempo tão diferente, que um clarão tão forte é um tempo de passagem, como é sempre o tempo. E no entanto assim é, porque assim é sempre! O que também significa que o 25 de Abril é irrepetível. Por isso ficou, fica como uma recordação imorredoura na memória de quem teve a felicidade de o viver.
Tive essa felicidade. Sou dos muitos que sabíamos o que fazer naqueles momentos de excepção, porque tive, tenho a felicidade de militar no PCP, o partido que atravessou dezenas de anos de regime fascista mobilizando, organizando e dirigindo a acção contra a ditadura.
Tínhamos um guia de acção claro e seguro, assente em ideais e princípios bem definidos, uma proposta política sincera e transparente: no VI Congresso do PCP fora aprovado o Programa para a Revolução Democrática e Nacional que havia de inspirar comunistas e muitos outros democratas nos últimos anos de luta contra a ditadura e na construção do regime democrático.
Tive igualmente a felicidade de participar de uma forma activa no Movimento Sindical Unitário, na Intersindical Nacional, que enquadrou e deu voz às camadas e sectores mais generosos e combativos dos trabalhadores portugueses - o que era um motivo mais de segurança, de confiança sobre o que havia para fazer naqueles tempos de gesta histórica.
Orgulho-me da participação, modesta, que tive em factos e momentos do 25 de Abril. E ocorrem-me particularmente três terrenos: O Movimento Sindical Unitário, o I Governo Provisório e a Assembleia Constituinte.
A Intersindical, enraizada em anos de acção legal, semi-legal e clandestina, beneficiando de uma forte influência do Partido Comunista mas também da participação de militantes de inspiração cristã, libertária e de outras correntes democráticas, irrompeu como uma poderosa força social no pós-25 de Abril.
A Intersindical Nacional foi uma das mais importantes forças impulsionadoras do processo democrático, teve um papel relevante na realização concreta da Revolução no plano das liberdades e direitos dos trabalhadores e um papel determinante no rumo de desenvolvimento económico e social que a Revolução imprimiu ao país.
I Governo Provisório
O I Governo Provisório, em que participei como ministro do Trabalho, recordo-o como um terreno de intensa e profunda luta política mas também como um importante centro de direcção e estabilização da situação democrática nascente.
Muito por influência do prestígio e da intervenção inteligente do camarada Álvaro Cunhal, que foi um dos quatro Ministros sem Pasta, o I Governo Provisório do pós-25 de Abril dirimiu muitos e complexos conflitos, assegurou a governação do país rumo à institucionalização do regime democrático.
O I Governo Provisório, que durou cerca de dois meses, de meados de Maio até 13 de Julho de 1974, apesar de ser o terreno de eleição de múltiplas disputas, tomou medidas políticas e legislativas tendentes a melhorar as condições de vida dos trabalhadores e do povo.
Congelou os preços dos bens de primeira necessidade (inclusivé as rendas de casa) e instituiu o Salário Mínimo Nacional em condições que beneficiaram, na época, 56% dos trabalhadores portugueses. Foi reconhecido de facto o direito à associação, organização e acção sindical de sectores até então completamente excluídos, como os professores, os funcionários públicos e os trabalhadores agrícolas, foi reconhecida a liberdade de contratação colectiva, o direito a férias remuneradas e muitas outras regalias menos significativas.
O exercício do direito de greve foi na prática reconhecido e a acção dos ministros comunistas no I Governo Pro-visório impediu que o direito à greve fosse legalmente limitado e reprimido como pretendiam outros sectores.
Conflitos laborais em áreas tão importantes como os têxteis ou os metalúrgicos ou tão sensíveis como a panificação, os transportes colectivos, os Correios e Telecomunicações, entre outros, foram ultrapassados com ressalva da legalidade democrática revolucionária e, muitas vezes, com a consagração de importantes regalias para os trabalhadores.
Havia quem entendesse que o I Governo Provisório era presa dos “tumultos” de rua, do clima de manifestações constantes que se vivia. Para nós, tratava-se, antes de mais, de evitar que o Governo travasse ou reprimisse os avanços democráticos e revolucionários das massas populares, tratava-se depois de consagrar na lei conquistas alcançadas nas lutas sociais e, finalmente e sempre, de imprimir à governação um sentido que favorecesse a institucionalização da democracia.
"Golpe Palma Carlos"
Na sequência de manobras de bastidores, que procuraram envolver órgãos do Movimento das Forças Armadas, o presidente do Conselho de Ministros, prof. Adelino da Palma Carlos, anunciou em reunião do Conselho de Ministros o seu pedido de demissão, por alegada ingovernabilidade do país, dada a orientação e a força das movimentações dos trabalhadores.
A demissão do Primeiro Ministro não implicava por si só a queda do Executivo, mas a demissão da maioria dos ministros arrastaria a demissão de todos, abrindo uma crise que poderia, eventualmente, permitir uma inflexão à direita e uma saída autoritária para os conflitos latentes na sociedade portuguesa de então.
Um a um, ministros conotados com a direita foram-se declarando demissionários também, solidários que estavam com o Primeiro Ministro. Faltava um nome para que os demissionários fossem maioritários - e todos os olhos convergiam sobre o ministro dos Equipamentos Sociais, prof. Manuel da Rocha, figura de independente, que várias vezes manifestara a sua falta de vocação para uma intervenção política activa e a sua vontade de que fosse substituído no Governo.
Não esquecerei jamais o testemunho do prof. Manuel da Rocha nesse momento. Disse qualquer coisa como isto:
“Parecem esperar que me demita, mas vou desiludi-los. Várias vezes manifestei vontade de sair, mas sempre motivado por uma orientação de índole pessoal. Não tenho a vossa opinião nem sobre a situação real do país nem sobre o papel deste Governo. Tomei posse como ministro pelo sentido do dever. O mesmo sentimento que me leva agora a dizer não à demissão. Sempre pensei que nenhum governo poderia, na situação que vivíamos, durar mais do que escassos dias. Acho extraordinário que dure há sete longas semanas. Se subsiste é porque os membros do Governo têm sabido encontrar o tom justo para responder aos múltiplos problemas que se nos apresentam. Não renuncio à acção deste Governo a que me orgulho de ter pertencido, acção que acho que tem sido muito útil e no essencial correcta”.
Sem que tivessem obtido a demissão do Governo, o “golpe Palma Carlos” tornou-se num feitiço que se voltara contra o feiticeiro.
Embora o general Spínola, que ocupava a chefia do Estado, tenha exonerado o Governo, e tenha ainda tentado manobrar a seu favor na constituição do próximo Executivo, o que aconteceu foi que o II Governo Provisório viu reforçada a sua componente democrática e revolucionária pela participação directa de Capitães de Abril no novo Executivo.
Assembleia Constituinte
Em 1975/76, como deputado do PCP à Assembleia Constituinte, participei nas actividades da Comissão de Trabalho, da Comissão de Redacção e do Plenário da Assembleia.
Uma vez mais, para nós, deputados comunistas, a orientação a imprimir aos trabalhos era clara: tratava-se de plasmar na Constituição da República o estado de direito democrático para que apontava o Programa para uma Revolução Democrática e Nacional aprovado em 1965.
Não tínhamos dúvidas de que devíamos definir da forma mais ampla possível os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Não hesitámos em consagrar como direitos fundamentais os direitos dos trabalhadores. Sempre nos batemos pela organização democrática do Estado e pela criação de verdadeiras autarquias locais, incluindo as regiões administrativas. Batemo-nos pela subordinação da economia a imperativos sociais e à ordem política democrática.
Quando a Constituição da República foi votada, em 2 de Abril de 1976, tínhamos consciência de que era a mais progressista e a mais democrática Constituição que alguma vez conhecera um país europeu. E orgulhávamo-nos naturalmente dela.
Ainda duas palavras mais: um último testemunho e uma opinião.
O testemunho: agradeço a este grande colectivo que é o PCP poder olhar serenamente para o passado e orgulhar-me do que fiz deste lado da barricada. Sem querer ignorar a responsabilidade individual que é inerente à nossa condição humana, sem ignorar que outras qualidades pessoais me te-riam permitido ter feito mais e melhor, sinto uma grande paz em saber que contribuí, também eu, para que caminhássemos para onde havia que avançar.
Uma opinião: É bom recordar, é bom comemorar, é justo homenagear, mas mais importante ainda é manter e prosseguir a luta. O mundo é hoje muito diferente do que era em 1974. Profundas transformações - realmente profundas transformações - conformaram um mundo diferente, vivemos uma situação extremamente complexa e cheia de contradições.
Mas se continuarmos a guiar-nos pelos ideais de fraternidade, de solidariedade, de justiça social e de paz, estaremos a lutar pela felicidade do Homem. E é preciso fazê-lo, já que ninguém o fará por nós.
«O Militante» Nº 238 - Janeiro / Fevereiro - 1999