As
Lutas de Classes em Portugal
nos Fins da Idade Média *
Nenhuma classe passa de governada a governante
por uma estrada em linha recta ou por avanços continuados. Não
o faz sem vitórias e sem derrotas, sem passar mil vezes da
defensiva à ofensiva e vice-versa, sem avançar hoje para recuar
amanhã, sem conquistar posições e ser forçada a
abandoná-las, e depois voltar ao combate e ter novos êxitos e
novos insucessos. Não o faz sem que, em muitas ocasiões, não
pareça estar vitoriosa, quando a vitória está longe, e, em
muitas outras, não pareça estar para sempre abafada e reduzida,
quando nas cinzas da derrota se desenvolve pela calada novo fogo
mais violento e mais potente. A conquista do poder político é a
conclusão de todo este longo e acidentado caminho.
E só então se fecha um ciclo da história e se abre o tempo de
uma nova sociedade.
Em 1383-1385, a burguesia não destruiu nem poderia então
destruir a ordem feudal.
Faltava-lhe para isso força económica, militar e ideológica
bastante. Não expulsou nem poderia expulsar do poder a classe
territorial-militar.. Passarão ainda séculos antes que a ordem
feudal seja destruída e o Poder conquistado pela burguesia.
Com a revolução, os burgueses partilharam momentaneamente do
Poder. Mas, nem ganharam a hegemonia política, nem ascenderam a
classe dominante.
As lutas e vitórias burguesas foram então lutas e vitórias
progressistas. As vitórias aristocráticas, vitórias da
reacção.
A nobreza representa as forças do passado, a burguesia o futuro.
A burguesia não era apenas uma força determinante da vida
económica do país. Na própria vida intelectual, é o
pensamento da burguesia historicamente ascendente que predomina e
inspira, dando origem às mais notáveis obras de arte. Fernão
Lopes na literatura, Afonso Domingues na arquitectura, Nuno
Gonçalves e Vasco Fernandes na pintura, são expoentes da
ideologia burguesa numa época histórica em que a burguesia
desempenhou papel progressista e revolucionário.
Na vida económica do país, a burguesia conserva igualmente um
papel dinamizador. Enquanto os interesses das classes
privilegiadas caminhavam em sentido contrário ao do progresso da
produção, os interesses burgueses exigiam tal progresso. Tanto
na agricultura como na indústria nascente, foi a burguesia a
impulsionadora das forças produtivas e a nobreza o factor
retardador e regressivo.
Nos campos, a burguesia começava lutando contra as limitações
impostas pelas relações feudais ao progresso da agricultura.
Começava lutando contra a existência de grandes extensões
incultas, de terras ricas votadas a pastagens ou a montanhas.
Começava lutando para a substituição da pequena produção
pela exploração à base de trabalho assalariado.
Começava lutando afinal pelo desenvolvimento das forças
produtivas feudais nos campos portugueses. Este o seu papel
progressista que, passados mais de cinco séculos e conquistado
finalmente o Poder pela burguesia, não foi ainda, em relação
ao campo, totalmente realizado nem será a burguesia a
realizá-lo.
Na indústria, deve-se à momentânea vitória e participação
no Poder da burguesia comerciante em fins do século XIV um
impulso na produção, uma vez que então (ao contrário do que
sucederá com o capitalismo em que «o comércio se torna então
o servidor da produção industrial») era o capital comercial
que comandava e impulsionava o desenvolvimento da indústria.
É possivelmente logo depois da revolução que em Alcobaça se
começaram a tecer lanifícios de cor. Na primeira metade do
século XV, manufacturava-se pano fino para lençóis do qual se
podia dizer que emparelhava com o vindo da França e da Bretanha.
Em 1439 tenta-se em Portugal o fabrico de papel aproveitando as
correntes de água e em 1441 existe em Leiria um «moinho de
papel». Em 1445 inicia-se a aplicação do pastel à tinturaria.
A reacção aristocrática triunfante, anichando-se e
consolidando-se no poder, anula os sucessos burgueses nos campos,
disputa ela própria, suga e dilapida os êxitos da indústria e
do comércio.
Mas nem pôde nem esteve interessada em destruir um aspecto
fundamental do ascenso económico da burguesia e das vitórias da
revolução do século XIV: a política comercial da nação
ligada à expansão do comércio marítimo. Ela própria procura
e consegue tirar proveito dessa nova política. O embate entre a
nobreza e a burguesia nesta matéria não porá em causa a
expansão. Versará fundamentalmente o tipo de expansão, que a
burguesia procurará cimentar no comércio e suas vantagens e a
nobreza procurará (e conseguirá finalmente) transformar em
conquista, rapina e aventuras militares que virão a converter-se
em desastre nacional.
É a vitória da burguesia do século XIV, o seu poder económico
real, a sua influência, que determinam a política portuguesa no
sentido do desenvolvimento do comércio internacional, que
permitem a Portugal ascender a primeira potência mercantil e
marítima e colocar-se à frente de todas as nações na epopeia
humana dos descobrimentos. É a vitória burguesa e o seu
espírito empreendedor e ascendente que dá a este empreendimento
tenacidade e método e também prudência e segurança. À
burguesia se deve toda essa luta gigantesca, persistente e
metódica, que culminou com a descoberta do caminho marítimo
para a Índia. E talvez também a ela se deva não ter a bandeira
portuguesa flutuado nos navios de Colombo e de Fernão de
Magalhães.
* Álvaro Cunhal, As Lutas de Classes em Portugal
nos Fins da Idade Média, 3ª edição,
Editorial Caminho, Lisboa, 1997, pp. 167-170.