Timor Leste - Sementes de liberdade, raízes de opressão
Maria da Luz Alexandrino
Doutora em Ciências Políticas
Leitora de O Militante,
Maria da Luz Alexandrino, professora universitária na
Califórnia (EUA), enviou-nos uma contribuição para as nossas
páginas que publicamos com muito interesse.
1.
Imaginação
Imagine um país onde há mais de 30 anos um golpe de Estado
perpetrado por generais levou à matança indiscriminada de
cerca, ou mais, de 1 milhão de habitantes. Imagine ainda que um
dos generais refere que o número é incerto porque é
difícil contar cabeças quando misturadas com tantos braços e
mãos. E que outro general afirma que, além do mais, o
assunto de quantos corpos é de somenos importância. Afinal,
alguns dos mortos eram comunistas e os outros poderiam vir a
sê-lo.
Imagine ainda que durante estes 30 anos os ditos generais
estabelecem um regime chamado Ordem Nova. A
Ordem Nova inclui ingredientes de visão orweliana:
a) Uma filosofia de Estado a que todos os cidadãos devem aderir,
por actos e pensamentos, chamada Pancasila;
b) forças armadas e polícia treinadas exclusivamente para a
opressão e repressão de dissidência e sublevação internas;
c) uma burocracia omnipresente e opressora;
d) Uma rede de informadores considerada excelente;
tudo bem racionalizado por princípios de Governo que
colocam o poder de Estado e os interesses de ordem e
estabilidade, ou melhor, os interesses dos generais, acima de
todos os direitos humanos e sociais (1). Imagine ainda que esta
Nova Ordem ultrapassa a imaginação mesmo de Orwell.
Este regime não se limita à reinvenção da história,
condicionamento de cidadãos pelo medo e destruição selectiva
de dissidentes. Este regime destrói fisicamente e em massa
todos os que define como incómodos para o poder.
A Ordem Nova conduz ao genocídio sistemático de
populações (2), prende e mata milhares de suspeitos e
familiares, mesmo que crianças, não vá a semente da pobreza
ser genética. E a definição de sublevação é larga. Pode ser
uma demonstração pacífica de camponeses contra a
expropriação das suas terras para construção de um campo de
golfe, por exemplo.
O regime inscreve-se como legalista na sua Constituição mas, na
política contra o crime, em três anos assassinou, em execução
sumária, mais de 5.000 (alegadamente) criminosos de delito
comum.
2.
Realidade
Se esta visão é deprimente como imaginação, ainda o é mais
como realidade. E o país que nem Orwell se atreveu a imaginar
chama-se Indonésia e a Ordem Nova, a
designação do regime que aí vigora, foi instituída pelo
general Suharto, o actual presidente, em 1965.
Por razões que só a lógica do colonialismo pode explicar, a
Indonésia, que com as suas 13.000 ilhas é o maior arquipélago
do mundo, compartilha a soberania de algumas ilhas com outros
países. Uma dessas ilhas é Timor. A ilha de Timor foi
dividida entre dois ocupantes coloniais, a Holanda e Portugal.
Timor Oeste foi libertado da Holanda em 1949. Timor-Leste, aonde
os portugueses desembarcaram em 1515, teve outro destino.
Quando ocupado colonialmente pela ditadura portuguesa,
Timor-Leste não parecia incomodar o regime de Suharto. Afinal,
havia muito em comum entre o Estado Novo de Salazar e a Ordem
Nova de Suharto para além da semelhança de nomes. Mas esta
atitude muda radicalmente quando a ditadura portuguesa cai e as
sementes de liberdade do 25 de Abril de 1974, a revolução dos
cravos, começam a semear a esperança na metade leste da ilha,
até então quase adormecida.
O novo regime democrático português definiu como uma das
políticas prioritárias o reconhecimento do direito à soberania
e independência das colónias. Em Timor-Leste formaram-se
movimentos políticos com o objectivo de assegurarem a
transição para a independência e governo autónomo do país: a
Frente Revolucionária para a Independência de Timor-Leste
(Fretilin) e a União Democrática de Timor (UDT) (3). Estas
forças eram diferentes em ideologia e práticas políticas,
tendo chegado inclusive a confrontação armada, mas essa
discussão não é aqui relevante. O que é relevante é que
começaram negociações tendentes à transferência de soberania
do território.
Suharto e os generais indonésios começam a sentir que a
ditadura indonésia teria dificuldades em sobreviver se um país
democrático porta-com-porta passasse a servir de
exemplo e suporte aos seus cidadãos oprimidos. E os planos para
a invasão de um território que há 460 anos não fazia parte da
restante Indonésia começam a esboçar-se e a serem postos em
prática. Para o povo de Timor-Leste, o povo maubere, as sementes
de liberdade estavam prestes a transformar-se em raízes de
opressão, opressão sem precedentes na história da ilha (4).
3.
Os grandes culpados
Havia, no entanto, obstáculos a aplanar previamente à invasão.
Talvez o maior fosse a opinião de membros importantes da
comunidade internacional, face a uma invasão que contrariava
todos os princípios das Nações Unidas sobre a descolonização
e os princípios de direito internacional sobre soberania.
A preocupação dos generais indonésios quanto aos escrúpulos
das grandes potências era desnecessária. Não há nada tão
certo como a morte para os vivos e... a hipocrisia das
democracias ocidentais com respeito aos princípios das Nações
Unidas e aos direitos dos povos colonizados, incluindo os
direitos humanos.
Em princípios de Dezembro de 1975, o presidente norte-americano,
Gerald Ford, e o sibilante secretário de Estado Henry Kissinger
visitam Jakarta e encontram-se com Suharto. No dia seguinte à
visita, Timor-Leste é invadido.
A Fretilin resiste nas montanhas do interior, mas as suas forças
são claramente inferiores.
De um lado, há um exército de um país de 185 milhões de
pessoas, especializado em matança de civis, treinado na
Inglaterra e Austrália, armado pelos Estados Unidos, Alemanha e
outras potências ocidentais (5). Do outro, um contingente de
heróicos nacionais de um país de pouco mais de meio milhão de
habitantes, quase sem treino ou armamento, fechados
em metade de uma ilha.
A Fretilin nunca teve qualquer hipótese no campo militar. Teria
alguma se pudesse contar com apoios internacionais. Se
Timor-Leste fosse, por exemplo, um poço de petróleo com uma
bandeira (6), uma monarquia estilo Kowait. Mas não era nem é, e
como tal a invasão fez-se e mantém-se com quase total
impunidade.
4.
Pesadelo
Nestas décadas de ocupação indonésia, o que se passa
internamente em Timor-Leste é a destruição em proporções
dantescas de um país, um povo, uma cultura. Apenas em 17 anos a
população é reduzida de 1/3. Os métodos que conseguiram tal
sucesso são os mesmos que os generais usaram como
teste contra a sua própria população. Em Timor-Leste, de novo,
só existe a dimensão e a intensidade com que eles são
utilizados - de forma ainda mais brutal e generalizada. Matança
indiscriminada de civis, deslocação forçada de populações,
chacina de aldeias inteiras, fome e doença. Durante os anos 80 a
destruição sistemática de culturas agrícolas de Timor-Leste
conduziu à fome que a Amnistia Internacional comparou com a fome
do Biafra nos anos 60 (7).
A outra faceta da política indonésia é a alteração
permanente da geografia e cultura da população maubere, com a
invasão de milhares de civis indonésios da ilha de
Java, a quem são atribuídas terras e concedidos empréstimos
favoráveis para se estabelecerem em Timor-Leste. E quem conheça
as condições de vida na Indonésia percebe que não deve ser
difícil encontrar cidadãos que queiram tentar a sorte em áreas
aonde podem ter résteas de esperança num futuro melhor.
Na imprensa das democracias ocidentais a invasão e ocupação
ilegais de Timor e a situação dos direitos humanos na
Indonésia não tem sido considerado assunto de grande interesse,
apesar das sucessivas resoluções das Nações Unidas condenando
a invasão e exigindo o reconhecimento da auto-determinação do
povo de Timor.
Afinal, a Indonésia transformou-se num bastião de defesa contra
o comunismo, tem uma grande importância geo-estratégica e
assegura um enorme contingente de mão de obra tão barata e tão
sem direitos que dificilmente encontra competição (8). Não é
por acaso que os Nike e Adidas são aí fabricados e em
condições tais que levam a maioria da esquerda norte-americana
a recusar comprar tais produtos de opressão.
5.
Homens e actos de boa vontade
Houve, no entanto, acontecimentos que forçaram a atenção da
comunidade internacional. Um, foi a chacina em 1991 de pelo menos
270 civis que acompanhavam um funeral no cemitério de Santa
Cruz, em Dili, matança sem provocação que foi filmada por um
repórter britânico que, corajosamente, conseguiu fazer sair o
filme do país. Outro, foi a prisão e julgamento fantoche, em
1992, do líder da resistência timorense, Xanana Gusmão. Outro
foi o acto desesperado de estudantes timorenses que saltaram o
muro da embaixada americana em Jakarta para entregar uma
petição pelos direitos humanos e autonomia de Timor-Leste ao
presidente norte-americano, Bill Clinton, em visita à Indonésia
em 1996. E finalmente, a academia sueca concedeu o Nobel da Paz
ao Bispo de Dili, D. Ximenes Belo, e ao resistente timorense
José Ramos Horta.
Desde então, a condenação do regime indonésio tem levado a
algumas medidas positivas por parte de países ocidentais. O
Canadá, por exemplo, proibiu a venda de armas pesadas e ligeiras
à Indonésia. Relevante foi também a actuação do ministro dos
Negócios Estrangeiros português, Durão Barroso, que levou a
Austrália ao Tribunal Internacional, do que resultou a
declaração de ilegalidade do acordo celebrado entre este país
e a Indonésia com vista à exploração de petróleo em
Timor-Leste.
Mas estas medidas são brandas e insuficientes. É necessário
forçar os governos democráticos a exigirem à Indonésia, sob
pena de real retaliação diplomática e económica, o
cumprimento das Resoluções das Nações Unidas, com vista à
auto-determinação de Timor-Leste.
E não resta muito tempo. De acordo com um dos mais importantes
críticos da invasão e ocupação indonésias, o já referido D.
Ximenes Belo, o genocídio progride tão rapidamente e a
emigração de indonésios é tão numerosa, que provavelmente em
menos de uma década já pouco restará do povo e cultura
maubere.
Notas:
(1) O regime não admite liberdade de expressão, reunião,
associação ou pensamento, greve, ou dissidência. Censura toda
a informação e reprime intelectuais. Atribui penas de anos de
prisão pelo crime de leitura de um livro proibido. O poder
judicial é uma extensão do executivo, que utiliza
generalizadamente tortura como instrumento de instrução de
processos legais.
(2) Não só do povo maubere de Timor-Leste, mas também das
populações de Aceh e Irian Jaya, as três áreas aonde existe
resistência armada organizada.
(3) Existia então outro movimento, a Apodeti (Associação
pro-determinação de Timor), que era apenas uma testa de ferro
dos interesses do regime indonésio.
(4) O colonialismo português em Timor foi caracterizado mais por
total negligência do que opressão directa.
(5) As forças de ocupação indonésias em Timor totalizam 20
mil homens, para uma população de pouco mais de meio milhão.
(6) Da expressão norte-americana que designa países
do tipo Kowait: oil well with a flag.
(7) A Amnesty International tem exercído pressão sobre o regime
indonésio com respeito aos direitos humanos e tem sido
instrumental da denúncia da situação do genocídio em Timor.
(8) A Indonésia tem o salário médio mais baixo da Ásia: 1.50
USD por um dia de trabalho escravo sem limite de horário.
Bibliografia
- Amnesty International. (1994). Power and Impunity -
Indonesia and East Timor. New York: John D. Lucas Printing
Co.
- Bergman, Sven. (1993). Timors Untelevised Terror: As
the World Looks Elsewhere, a Small Island Suffers a Hideous War.
The Washington Post, Sunday, March 14: 2-3.
- M.R. (1995). Solução para Timor Passa por Xanana e
Ximenes. Expresso, 1 de Abril, Nacional: 7.
- OShaughnessy, Hugh. (1994). East-Timor: Getting Away
With Murder?. The British Coalition for East Timor.
- Sousa, Fernando. (1995). Mais Tempo para Resolver Timor.
Diário de Notícias, 11 de Janeiro, Política: 8.