1.
A carência de habitação
corresponde a uma questão de classe. Na sociedade capitalista, tal como em
estádios anteriores de desenvolvimento, a quota parte de riqueza que cabe aos
trabalhadores é diminuta e leva a que a maioria destes seja incapaz de aceder à
compra ou aluguer de um alojamento de boa qualidade, bem localizada e em zona
correctamente infraestruturada e equipada.
O papel do Estado tem,
como é óbvio, servido aos interesses da classe dominante. No processo da
revolução industrial, o objectivo era o da maximização da renda fundiária em
favor da burguesia. Hoje, no quadro do capitalismo monopolista de Estado, a
habitação torna-se imobiliário e ganha dimensão estratégica para a acumulação
de capital, por parte dos grandes grupos financeiros.
Quando em 1872 Engels
escreve "Para a Questão da Habitação", afirma que "é claro como a luz do dia
que o Estado actual (leia-se Estado da burguesia) não pode nem quer remediar a
praga da habitação".
De então para cá a "praga"
da carência de habitação tem sido um dos laboratórios do processo histórico da
luta de classes. Por vezes o Estado, forçado pela luta dos trabalhadores, do
seu Partido e dos Sindicatos, avança com medidas ditas de "Estado Providência".
Mas, logo que a correlação de forças é favorável ao capital, o Estado
descobre-se como mero regulador, ciente das vantagens absolutas dos mecanismos
de mercado e da corresponsabilização entre sectores público e privado,
engordando este com a transferência de significativas verbas públicas.
2.
Numa síntese, para o
nosso país, veja-se qual foi o papel do Estado, ao longo da história recente.
Durante a Monarquia
Constitucional e quando se verificou, por parte do proletariado nascente, a
sobreocupação dos bairros medievais (os mais degradados e insalubres), O Estado
limitou-se a garantir à burguesia um conjunto de incipientes normas
urbanísticas que possibilitaram a construção de "páteos", "vilas" e "ilhas".
Foi nestes locais, de
elevada densidade de ocupação, em áreas de habitação reduzidíssimas e onde a insalubridade
dominava, que se amontoavam as familias trabalhadoras. No final do século XIX,
contavam-se 50.000 habitantes nas "ilhas" do Porto e 30.000 nos "páteos" e
"vilas" de Lisboa.
A República burguesa
manteve no geral as mesmas políticas. De diferente apenas o facto de, como
resposta à luta sindical, ter sido iniciada a construção de três bairros
operários (Arco do Cego e Ajuda, em Lisboa e Arrábida, no Porto) concluídos já
no regime fascista.
Durante o regime fascista,
a posição do Estado face à habitação torna-se mais complexa. Sendo um Estado
totalitário da burguesia era, ao mesmo tempo, e nesta área, sujeito à pressão
do exemplo do que se fazia lá fora, em especial no pós 2ª Guerra Mundial. O
discurso da preocupação face à insalubridade dos bairros proletários aparecia
em consonância com uma Europa que se reconstruía, segundo novos critérios
urbanísticos e construtivos. E ao mesmo tempo a substituição desses bairros
dava resposta ao medo, face ao perigo de aí ser mais fácil a propagação das
ideias revolucionárias.
Nasceu assim um Estado
interveniente, num conceito de "casas para pobres" rigidamente vigiadas e onde
às autoridades administrativas cabia o direito de proceder ao desalojamento,
sempre que os ocupantes se "tornem indignos do direito de ocupação que lhes foi
concedido" [1]. Ou seja o direito à
habitação não só não estava garantido, como ainda havia legislação "garantindo"
que se podia ser arbitrariamente privado da habitação.
Mobilizando os "corpos
administrativos" e Misericórdias e, após 1950, com recursos da Caixa de
Previdência, foram produzidos pelo Estado, entre 1940 e 1970, cerca de 59.000
fogos. Nesta data, a promoção de habitação pelo Estado correspondia a 8% do
total de habitação produzida, sendo esta uma percentagem muito inferior à
verificada no resto da Europa.
Entretanto, em 1966, foi
criado o Fundo de Fomento da Habitação a quem coube o lançamento de um
significativo conjunto de programas habitacionais com mais de 1.000 fogos cada
(os Planos Integrados). No geral vêm a ser concluídos após o 25 de Abril.
Durante os últimos anos
do regime, a partir dos anos sessenta, assistiu-se ao agudizar das carências
habitacionais em torno das grandes cidades. Para isto contribuiu a política de
expansão industrial, oferecendo emprego pouco qualificado às populações de um
interior economicamente deprimido e de onde o êxodo rural já havia tido início
com a emigração para o estrangeiro.
A este avolumar de
carências respondeu o regime com o fechar de olhos ao crescimento dos
aglomerados de barracas e dos chamados bairros clandestinos.
Não cabendo nesta
intervenção o desenvolvimento do estudo destes "fenómenos", importa deixar a
opinião de que o crescimento de barracas e de clandestinos correspondeu de
facto a uma política de habitação. Se assim não fosse, bem diferente teria
sido, certamente, a sanha repressiva do regime. Refira-se que as áreas do
loteamento ilegal se situaram sempre em zonas que, de momento, não interessavam
à especulação imobiliária em crescimento no período marcelista. A especulação
"cavalgava" o crescimento "em mancha de óleo" das cidades e os loteamentos
ilegais ganhavam o espaço intercalar, muitas vezes áreas de reserva e terrenos
sem aptidão urbana (leitos de cheia, grandes declives, solos geologicamente
instáveis).
Refira-se a propósito
que, pelo menos na Área Metropolitana de Lisboa, os loteadores do clandestino
eram, na sua maioria, os mesmos que operavam na urbanização legal. E tendo
naturalmente os mesmos parceiros financeiros.
O regime democrático veio
a herdar os resultados: em 1970 existiam cerca de 30.000 barracas e a área
loteada clandestinamente, sem qualquer infraestrutura ou equipamento, tinha
dimensão tal que permitiria a construção de 450.000 habitações.
Um apontamento apenas
sobre a questão dos solos. Se durante as primeiras décadas do regime, no
seguimento aliás do procedimento tradicional, a competência de urbanizar foi
eminentemente pública este entendimento foi invertido em 1965. Data de então a
primeira legislação em que o loteamento urbano foi liberalizado, passando para
os privados a competência de adquirir terrenos, infraestruturá-los e negociar
os lotes. E apropriar-se das mais valias.
Teve aqui início um
processo imparável de especulação fundiária e de entrega da função de urbanizar
ao capital financeiro.
O processo
revolucionário, que se seguiu ao 25 de Abril, colocou o problema da carência de
habitação na ordem do dia. E, pela primeira vez na história do país, o direito
à habitação ganhou a dignidade de imperativo constitucional.
A Constituição da
República Portuguesa, de 1976, afirma, no ponto 1 do artigo 65º, que "(...)
todos têm direito, para si e para a sua familia, a uma habitação de dimensão
adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal
e a privacidade familiar(...)".
E, ainda no ponto 2 do
mesmo artigo, ficam bem claras as incumbências do Estado de molde a garantir
esse direito. Elas passam por programar e executar uma política de habitação
que não só promova a construção de habitações económicas e sociais, mas proceda
também à subordinação da construção privada ao interesse geral.
As reivindicações
populares, num processo de mudança intensamente vivido e que, apontando o
horizonte do socialismo, procurava estabelecer a igualdade e a justiça social,
tiveram resposta, mesmo antes da aprovação da Constituição, nas medidas tomadas
pelos Governos Provisórios. Destas, importa referir:
-
a conclusão dos Planos Integrados e o lançamento de diversos programas
de pequena e média dimensão;
-
a criação do programa SAAL com o objectivo de proceder ao realojamento
dos habitantes das barracas, no local, com inúmeros processos de
auto-construção e com grande participação popular;
-
a criação dos Contratos de Desenvolvimento para a Habitação que, para
além de possibilitarem a construção de fogos de custos e qualidade controlados,
permitiram apoiar a indústria da construção civil, vivendo então um complexo
processo de ruptura com a anterior dominante "imobiliário-financeira". E que
permitiam ainda intervir ao nível da especulação praticada sobre o solo, ao
limitarem o valor destes a uma percentagem de custo final da habitação
(controlado).
Ainda neste período o
Estado Português, se bem que com apoios internacionais, deu início ao processo
de realojamento de cerca de trezentos mil cidadãos nacionais, provenientes das
antigas colónias.
Os primeiros Governos
Constitucionais prosseguiram, no geral, estas políticas lançando também alguns
programas, ainda que incipientes, de renovação urbana e de recuperação de
imóveis degradados.
Não obstante o primeiro
acordo com o Fundo Monetário Internacional, negociado em 1977 e 1978 por um
governo presidido por Mário Soares, haver levado a restrições no investimento
público este prosseguiu, no sector da habitação, tendo-se atingido, em 1984, a
percentagem máxima de promoção pública habitacional:17.7%.
Muito embora esta
percentagem ainda representasse uma pequena parcela da intervenção estatal
necessária, ela era demasiado elevada para os desígnios do capital.
O segundo acordo de negociações
com o FMI decorreu em 1983 e 1984, na vigência do Bloco Central (PS/PSD),
chefiado por Mário Soares.
As imposições do FMI,
obrigando a profundos cortes, no investimento e no consumo, conduziram, no
imediato, ao aumento do desemprego e dos problemas sociais. Ao nível do
investimento público foram colocadas severas restrições com o objectivo de
conseguir "menos Estado".
Estas restrições
traduziram-se, no referente ao sector da habitação, em:
-
dirigir quase exclusivamente os apoios e financiamentos públicos ao
crescimento da promoção imobiliária e ao desenvolvimento do mercado de
aquisição de casa própria;
-
extinguir o Fundo de Fomento da Habitação;
-
reduzir drasticamente a promoção e apoio aos Contratos de
Desenvolvimento para Habitação.
-
obrigar as Cooperativas de Habitação Económica a entrar num processo de
desvirtuamento dos princípios cooperativos e a abandonar as intenções
socializantes.
-
alienar o parque habitacional público o mais rapidamente possível,
ainda que, de início, apenas àqueles que nele habitavam.
Os anos seguintes ao
segundo acordo com o FMI traduziram-se por um quadro social duríssimo:
-
aumentou o desemprego, rondando os 9% da população activa (1983);
-
viveu-se o flagelo dos salários em atraso, afectando cerca de 100.000
trabalhadores(1984);
-
o consumo privado desceu em termos reais, mais de 4% (1983/4);
-
e a inflação atingiu números superiores aos 30% (1983).
-
alastrou a miséria e degradaram-se, mais ainda, as condições de
habitação de muitas familias trabalhadoras. O flagelo das barracas, cujo número
havia diminuído na década anterior, aumentou de novo, em especial na Área
Metropolitana de Lisboa.
As directivas deste
acordo com o FMI, depois prosseguidas por orientações comunitárias, conduziram
a um quadro de investimentos públicos na habitação, completamente afunilado no
apoio à aquisição de casa própria.
Assim, por exemplo, entre
1992 e 2002, o Estado investiu:
-
811.000 milhões de euros, na construção de habitação pública. Foram
construídos 40.104 fogos;
-
201.702 milhões de euros, no apoio à recuperação de fogos. Foram
recuperados 23.050 fogos;
-
5.947.750 milhões de euros, no apoio à aquisição de casa própria (nas
bonificações e deduções fiscais). Foi apoiada a aquisição de 1.504.789 fogos.
Ao nível da promoção
pública de habitação, o Governo, chefiado por Cavaco Silva, ao mesmo tempo que
afirmava não caber ao Estado a responsabilidade pela resolução do problema
habitacional, procurou endereçar responsabilidades às autarquias locais. Numa
data ainda distante da aprovação da Lei que atribuiu competências, entre
outras, na área da habitação (Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro), começaram "de
facto" estas competências a ser imputadas ao Poder Local.
O Decreto-Lei n.º 226/87,
de 3 de Junho, é o primeiro a estabelecer que "a resolução dos problema de habitação
dos agregados familiares de baixos recursos económicos passaria por uma
colaboração entre o Estado e as autarquias".
A colaboração da
Administração Central correspondia a subsídio a fundo perdido que poderia ir
até 50% do valor da construção. Os restantes 50%, de responsabilidade
municipal, eram objecto de financiamento.
Apesar de se tratar de
uma competência não atribuída e não obstante os elevados custos para os
municípios, houve quem elegesse o problema da habitação como uma das
prioridades municipais. Os municípios de Lisboa e Oeiras, assinaram, nos termos
desta legislação, diversos acordos de colaboração. E terão começado, também aí,
um complexo processo de endividamento.
Seis anos decorridos, com
o Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de Maio, e ainda com Cavaco Silva como Primeiro
Ministro, nova imposição foi colocada às autarquias: realojar a população
residente em barracas, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Era assim
criado o chamado Programa Especial de Realojamento (PER).
O PER, delimitando o
realojamento às familias que viviam em barracas, afirmava-se essencialmente
como um plano de cosmética urbana. Era profundamente injusto para milhares de
familias vivendo em sobreocupação e em alojamentos degradados.
A ambição imposta às
autarquias era significativa: obter solo infraestruturado e promover, num
período de cinco anos, o realojamento de 48.319 familias, 33.415 na Área
Metropolitana de Lisboa e 14.904 na Área Metropolitana do Porto.
O financiamento do
programa seria garantido da seguinte forma: 40% de subsídio proveniente da
Administração Central, 40% obtido através de endividamento e 20% de esforço
imediato do município (percentagens referidas nos valores máximos dos fogos,
definidos anualmente em portaria).
Um esforço suplementar era
ainda exigido aos municípios: receber todo o património habitacional do Estado
e que este ainda não conseguira vender.
Tratava-se de um
património degradado, quer ao nível das habitações, quer ao nível de
equipamento, infraestruturas e espaços verdes. Tratava-se igualmente de um
património em "déficit" de gestão. Como exemplo desta situação cite-se o
sucedido em Setúbal. O município recebeu em 1994, 2.582 fogos do ex-IGAPHE.
Para além dos fogos e do espaço exterior estarem degradados, os arrendatários eram
devedores de cerca de 750.000 euros.
Apesar das insuficiências
e injustiças do PER e apesar de se tratar de uma competência imposta ao arrepio
da Lei, sem transferência de meios financeiros e forçando a elevado
endividamento, os municípios empenharam-se na concretização do programa. Não
obstante, confirmou-se o irrealismo do prazo. Em 2001, decorridos oito anos,
apenas se havia procedido a 73% dos realojamentos previstos. Hoje assiste-se ao
drama social de se continuarem a fazer realojamentos com base, obrigatória, num
levantamento de 1993. E continuam a existir 27.319 barracas (dados de 2001).
Nesta lógica, de
desresponsabilização do Estado da responsabilidade de garantir o acesso à
habitação, a legislação que se seguiu ao PER, procurou alargar as competências
dos municípios, primeiro abrindo o programa a todo o país e depois
possibilitando a aquisição de fogos devolutos para proceder a realojamentos.
É ainda nesta linha que
surge o PROHABITA, criado pelo Decreto-Lei n.º 135/2004, de 3 de Junho. Este
programa alarga o universo de situações a merecer o realojamento, possibilita a
aquisição de prédios devolutos para reabilitação e posterior realojamento e
permite a construção dos equipamentos em falta nos bairros de habitação
pública.
Do PROHABITA poder-se-ia
afirmar tratar de um razoável programa de habitação, caso a Administração
Central assumisse a sua concretização ou transferisse para as autarquias os
meios financeiros necessários à mesma. Como isto não é feito a maioria das
autarquias não pode aderir ao programa face ao elevadíssimo esforço financeiro
que este exige.
Veja-se a este respeito,
o exemplo de um dos dois municípios que, em maior escala aderiram ao programa.
O município de Coimbra assinou, em 2005, um protocolo visando a recuperação de
332 fogos, a construção de 140 novos fogos e o aluguer, para arrendamento
apoiado, de 100 fogos. O investimento global é de 22 milhões de euros. Destes
cabem ao município 13.5 milhões, dos quais 8.5 milhões são de endividamento.
Acresce que o município é ainda responsável pelo pagamento de cerca de 60% da
renda técnica dos fogos.
3.
Este o ponto de chegada
deste percurso através das políticas nacionais para o sector da habitação. Nos
33 anos decorridos desde o 25 de Abril, este é um percurso que nos conduz de um
Estado Provisor, com um papel directo na oferta de habitação, a um Estado
Regulador que defende a privatização do parque habitacional público e passa a
parceiros públicos sem meios, as autarquias, ou a parceiros privados e as suas
funções.
Quanto ao papel das
autarquias e dado viver-se um momento em que tanto se fala de transferências de
competências em diversas áreas do Estado Social, seja-me permitida uma reflexão
tendo como exemplo o sucedido na área da habitação.
De início tudo eram boas
intenções. As competências deviam ser exercidas pelo Poder Local apenas porque
estava mais próximo das populações e serviria até melhor. E a muitos autarcas o
"poder de dar casas" também se afigurava simpático.
Depois, transferiram-se
mais e mais responsabilidades sem meios. As populações deixaram de entender o
problema da habitação como um problema do Estado e habituaram-se a procurar nas
autarquias a sua resolução. Os eleitos locais passaram a ser penalizados por
cumprirem programas limitados ou injustos e por respeitarem leis, duras, de
arrendamento apoiado.
Agora, o Governo até já
se permite prescindir de uma simples Secretária de Estado da Habitação na sua
estrutura orgânica e de proceder a cortes sistemáticos nas verbas, do Orçamento
do Estado, destinadas ao Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana.
Neste processo, cabe ao
actual Governo terminar com qualquer modelo, estruturado nacionalmente, de
política de habitação, voltada para a promoção do Estado.
Às autarquias, sem meios,
cabe responder às familias carentes, deixar estiolar os programas
habitacionais, alienar o património habitacional público e correr atrás de
parcerias público-privadas que venham entregar ao capital financeiro as mais
valias da reabilitação urbana.
E isto num país onde,
apesar do excedente de cerca de 550.000 fogos, se continuam a verificar pesadas
carências habitacionais, na ordem dos 180.000 fogos, naturalmente destinados a
familias de mais fracos recursos,
Como é óbvio é preciso
lutar contra este estado de coisas. É preciso que os Estado se reposicione como
mais e melhor Estado.
[1] Artigo 12º do Decreto n.º 35106, de 6 de
Novembro de 1945
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