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Energia Nuclear: esperança ou ameaça? - Intervenção de Frederico Carvalho - Sessão sobre Energia
Terça, 22 Maio 2007
 

Previsões são sempre difíceis,

sobretudo quando dizem respeito ao futuro.

Niels Bohr (1885-1962)

 

Introdução

 

A questão da Energia Nuclear, mais especificamente, do seu aproveitamento para fins civis com vista ao abastecimento em energia das sociedades humanas no século XX!, é uma questão complexa que envolve problemas de ordem técnica e científica, suscita interrogações no plano dos custos associados ao seu aproveitamento, alimenta receios no que toca aos riscos que representa para as populações e para o meio ambiente, e acende paixões que não se podem considerar desligadas da tomada de consciência pela opinião pública das mortíferas consequências de uma utilização criminosa - o lançamento pelos EUA das bombas que destruíram as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em Agosto de 1945 - ou de manipulações descuidadas como a que levou em 1986 ao grave acidente ocorrido num dos reactores da central nuclear de Chernobyl, na Ucrânia.

 

A questão da energia necessita de uma abordagem global como acontece com outras que hoje se colocam com especial acuidade às sociedades humanas - o abastecimento de água para rega e para consumo humano, a manutenção da fertilidade dos solos e o combate à diminuição das áreas cultiváveis, o controlo da desflorestação e a limitação do crescimento demográfico, entre outras. A globalização do nosso tempo carece de ser entendida em toda a sua extensão e não apenas quando e naqueles aspectos que interessam ao grande capital, quer como fonte de acumulação quer como ameaça pressentida aos seus interesses de curto prazo.

 

É a própria sustentabilidade da vida sobre a terra que está em causa e é, desde logo, importante salientar a este respeito, que a globalização neoliberal dominante não só não apresenta solução para os problemas mencionados como, pelo contrário, agrava as assimetrias existentes entre os que têm acesso aos seus benefícios e aqueles que ela marginaliza. A via pela qual o mundo caminha é incompatível com um desenvolvimento sustentável e ao mesmo tempo socialmente justo, o que conduz ao dilema que a humanidade hoje enfrenta - "socialismo ou barbárie".

 

Importa em seguida sublinhar que o grau de consciência deste estado de coisas é ainda muito débil o que torna indispensável e insubstituível a acção de esclarecimento que as forças progressistas devem procurar levar a cabo, sob múltiplas formas, em diferentes contextos, nas mais diversas situações e oportunidades. De facto o futuro depende do despertar da "alma colectiva das massas"[i]

 

No que respeita ao abastecimento energético, a realidade com que nos defrontamos é a da impossibilidade de encontrar soluções no plano exclusivamente nacional ou mesmo regional, no sentido de satisfazer todas as necessidades de energia das respectivas populações. As limitações existentes têm a ver não apenas com a disponibilidade de recursos energéticos e a localização das suas fontes mas também com as disponibilidades financeiras e a dimensão dos investimentos necessários.

Analogamente, os problemas de segurança e de minimização de riscos, ambientais e humanos, não se confinam às fronteiras físicas de países ou regiões nem, muito menos, às fronteiras políticas. Basta pensar na influência do regime dos ventos e das correntes marinhas na disseminação de materiais ou agentes poluentes que se estende e faz sentir em áreas extensas, como se verifica com os derrames de petróleo resultantes de acidentes no mar ou na contaminação radioactiva do ar e dos solos provocada pelo acidente de Chernobyl. Como acontece também com as chuvas ácidas resultantes principalmente da queima de carvão em centrais termoeléctricas ou a rarefacção da camada de ozono na alta atmosfera consequência da emissão de certo tipo de agentes químicos utilizados pela indústria.

 

Sendo assim é imperioso concluir que se torna indispensável a criação ou o reforço de mecanismos de regulação no plano internacional que abram caminho a uma gestão justa, equilibrada e segura dos recursos disponíveis, em particular dos recursos energéticos, actuais e potenciais.

 

Importa ainda, neste contexto, chamar a atenção para o facto de que não é apenas no mundo desenvolvido e no desenvolvimento industrial que reside o perigo real ou potencial de destruição da biosfera; o subdesenvolvimento pode também tornar-se um gigantesco predador ecológico que pode deixar atrás de si, e deixa efectivamente, a desertificação, o esgotamento dos solos, a destruição das florestas e a contaminação das águas. O destino dos pobres deve interessar aos ricos mesmo numa perspectiva puramente egoísta.

 

Traços principais da situação actual

 

Em 2000, o consumo mundial de energia era aproximadamente equivalente a 10 mil milhões de tep ou cerca de 400 exajoule por ano[ii]. Cerca de 80% desta energia é consumida nos países mais desenvolvidos onde vive menos de 20% dos habitantes do planeta. A população mundial, que é actualmente de cerca de 6300 milhões de pessoas, quadruplicou nos últimos 100 anos. Nas últimas duas décadas o ritmo de crescimento da população mundial tem-se mantido à volta de 80 milhões de pessoas por ano, podendo assim esperar-se, admitindo embora uma diminuição do ritmo de crescimento (para algo menos de 1% ao ano), que a população mundial venha a atingir em meados do século, perto de 10 mil milhões de pessoas. Nestas condições, é previsível que as necessidades energéticas até 2050, venham a atingir cerca de 800 exajoule por ano (20 mil milhões de tep), o que acontecerá se o consumo de energia per capita acompanhar o crescimento populacional a uma taxa próxima de 2% ao ano. É previsível que o aumento da população mundial e o aumento da procura de energia apresentem um padrão significativamente assimétrico, em que a parte dos países mais desenvolvidos, se torne, em termos relativos, progressivamente menor em comparação com o resto do mundo e seja ultrapassada pela que caberá a este, já em meados do século.

Entretanto, o consumo de energia per capita deverá evoluir também assimetricamente no sentido do equilíbrio entre países ricos e países pobres o que corresponderia a inverter a actual tendência para o agravamento da distribuição da riqueza em desfavor destes últimos. Mas isto não será possível sem mudanças radicais de política que certamente não serão pacíficas e porventura não ocorrerão sem graves convulsões sociais.

 

2. Os números anteriores que são valores estimados, mas prudentes, colocam a questão de saber em que medida e de que forma poderão vir a ter cobertura as necessidades energéticas da população mundial.

 

Participação das fontes de energia primária no abastecimento energético mundial

 

Ano 2004

450 exajoule/ano

%

Combustíveis fósseis

80,5

Carvão

24,7

Gás natural

20,5

Petróleo

35,2

Energia hídrica

2,1

Energia nuclear

6,4

Outras energias

11,0

Combustíveis renováveis e resíduos

10,5

Outras renováveis (eólica, solar, geotérmica)

0,5

Fonte: Key World Energy Statistics 2006, International Energy Agency (TPES Total Primary Energy Sources, World Balance, p.39)

 

O quadro mostra a participação, em valores aproximados, das fontes de energia primária no cômputo global do abastecimento energético mundial em 2004.

Os factores que determinam previsões do futuro, mesmo a médio prazo, feitas hoje, são vários e todos eles envolvem um certo grau de incerteza, nomeadamente, no que se refere aos recursos energéticos de origem fóssil ou de outra natureza, mas também no que se refere ao progresso na evolução das tecnologias e à própria evolução das necessidades de consumo, estas, ligadas à evolução demográfica e das condições de vida das populações. Entretanto, em certos aspectos, verifica-se uma significativa aproximação entre previsões de diferentes origens em especial no que diz respeito à evolução dos recursos energéticos fósseis, não renováveis. A manterem-se os níveis e os padrões actuais de consumo, as reservas asseguradas de gás natural esgotar-se-iam em 60 anos, as de petróleo em 40 anos e as de carvão em cerca de 200 anos.

 

Referindo-se aos recursos petrolíferos Díaz-Balart diz [iii]:

"Trata-se aqui de factos (a progressiva diminuição dos recursos) e apesar de as suas implicações serem extremamente claras e deverem ser facilmente compreendidas, parecem por demasiado insignificantes as medidas que a comunidade mundial tem em curso para as contrariar. Em 1992, as nações industrializadas mostraram-se preparadas para se lançarem numa guerra pelo petróleo - a Guerra do Golfo. Qual será a sua posição quando as reservas se forem esgotando nos campos de petróleo, um atrás do outro, e os recursos restantes forem ficando nas mãos de um número cada vez menor de nações?

Se a história nos diz alguma coisa, então serão as nações em desenvolvimento que mais cedo e mais fundo, sofrerão com isso, mas a ameaça geopolítica será então muito séria. Na Guerra do Golfo as nações industrializadas agiram de concerto, na base de interesses comuns. À medida que as reservas de petróleo forem diminuindo e na ausência de fontes alternativas de energia efectivamente disponíveis, os interesses comuns das nações industrializadas divergirão entre si. Esta é a semente de onde nascem as guerras mundiais."

 

Em qualquer caso, é previsível que até ao fim do século se mantenha uma elevada dependência do consumo de combustíveis fósseis, embora seja claro que deva ter lugar uma alteração gradual da composição do balanço energético global, não esquecendo que o sector energético possui uma grande inércia decorrente não só do elevado montante dos investimentos necessários mas também da aceitação pública da alteração de hábitos de consumo. A parte do petróleo deverá manter a tendência decrescente que vem mantendo desde o início da década de 80 do século passado, podendo situar-se em 2050 em valores no intervalo de 10 a 15 %, principalmente devido à evolução dos consumos nos países industrializados. A quebra do consumo de petróleo tenderá a ser compensada pelo aumento dos consumos de carvão e de gás natural. Neste contexto, há todas as razões para desenvolver a utilização das energias renováveis, designadamente, hídrica, eólica e solar. No campo destas "novas energias" parece certo dizer que a energia eólica e a energia solar são as que se apresentam com melhores perspectivas de contribuir para a necessária alteração dos padrões de consumo. Não deve esquecer-se, entretanto, que uma utilização em larga escala destas energias amigas do ambiente tem limitações que são inerentes à sua natureza, decorrendo, designadamente, da variabilidade da respectiva capacidade de produção em função das condições geográficas ou, climatéricas e das que estão associadas às flutuações diárias e sazonais. Entretanto, é indispensável prosseguir de forma sustentada o trabalho de investigação e de desenvolvimento tecnológico tendente a aumentar o rendimento da conversão energética dos processos e dispositivos utilizados, melhorar a respectiva economia e reduzir os impactos ambientais que lhes estão associados.[iv]. No capítulo dos transportes, merece especial referência a utilização do etanol como combustível, em substituição da gasolina. No plano técnico pode mostrar-se que a produção de etanol a partir do grão do milho, não é suficientemente rentável do ponto de vista energético nem significativamente favorável do ponto de vista ambiental. Ao mesmo tempo, as quantidades que seria necessário transformar para que a quantidade de combustível daí resultante tivesse algum peso na substituição de gasolina, seriam de molde a afectar a satisfação de necessidades alimentares primárias das regiões pobres do globo. Já a produção de etanol a partir da celulose de resíduos vegetais, do próprio milho e outras espécies, incluindo plantas herbáceas sem utilização para fins alimentares, poderá constituir no futuro uma alternativa com valor energético e ganho ambiental positivo. A tecnologia correspondente não está todavia ainda disponível.[v]

 

De acordo com alguns autores, a contribuição das energias renováveis para o balanço energético global poderia aproximar-se de 30% em meados do século. Entretanto, é difícil admitir a possibilidade de substituir pela via das "novas energias", a contribuição dos combustíveis fósseis para a produção de electricidade. A nível global, o consumo de energia eléctrica actual é coberto em cerca de 2/3 pela queima de combustíveis fósseis e o terço restante pela produção hídrica e nuclear.

 

Importa também ter em conta o facto de que os diferentes combustíveis fósseis não são equivalentes do ponto de vista da sua utilização. Será mais correcto considerá-los complementares do que intermutáveis, desse ponto de vista. Neste contexto de esperada escassez e de vantagem competitiva na utilização, a situação mais preocupante será a dos hidrocarbonetos. O fim da "civilização do petróleo" está à vista e interessa reconhecer que se terá tratado de um breve intervalo histórico, o que não lhe retira, naturalmente, importância para quem o viveu e vive ainda.

 "A consideração destes números deveria ter um efeito salutar, porquanto eles tornam claro que aquilo que a natureza levou centenas de milhões de anos a criar - os hidrocarbonetos - será consumido e esgotar-se-á num período extremamente curto da história do planeta." [vi]

 

Convém entretanto sublinhar que não é apenas a inevitabilidade da progressiva escassez dos hidrocarbonetos fósseis que deverá levar-nos a procurar soluções alternativas para o abastecimento energético das sociedades humanas, mas também o facto de que essas matérias primas têm utilizações mais nobres e que substituir, nomeadamente, o petróleo, na sua aplicação para esses outros fins não energéticos, não será tecnicamente simples e exigirá seguramente um considerável esforço adicional de investimento. Por outro lado, os efeitos ambientais perversos resultantes da queima dos combustíveis fósseis deverão ser vistos como um importante incentivo à procura de soluções energéticas alternativas.

 

É necessário não atrasar mais a preparação das mudanças que assegurem uma existência com qualidade aos nossos filhos e netos. Cito Gert Harigel cuja opinião partilhamos[vii]: "Medidas visando a substituição de recursos, a modificação de hábitos e a distribuição equilibrada de recursos têm de ser tomadas desde já, e quanto mais depressa melhor". E o mesmo adianta, com pertinência, que a escassez de muitos recursos primários e não só recursos energéticos, " (...) será agravada por dois motivos: o crescimento da população e a procura de níveis de vida mais altos, em particular no sentido da tentativa de eliminação do fosso entre países pobres e países ricos, o que requererá, de um dos lados, redução, e, do outro, crescimento e melhor rendimento de utilização de recursos." E acrescenta que se pode duvidar que uma tal política possa ser imposta e aplicada consequentemente, mas não de que ela seja um imperativo de sobrevivência da humanidade. Por outro lado, "o preço da energia subirá à medida que os recursos forem diminuindo, a par do crescimento dos consumos, assim aumentando a pressão sobre a carteira dos consumidores, obrigando a mudanças dos padrões de despesa, e necessariamente baixando o nível de vida," E faz notar que "acções militares não contribuíram no passado e não ajudarão no futuro, a aliviar esta tendência nem no plano monetário nem noutro planos. É tempo de os políticos agirem com determinação e de a população entender a gravidade do problema".

 

No que respeita ao fosso entre pobres e ricos, tem interesse referir que o consumo de energia per capita nos EUA é 11 vezes maior que o consumo de energia per capita na República Popular da China. Acreditamos que este factor de 11 não reflecte apenas e só a profundidade do fosso que separa a produtividade das economias dos dois países mas é também um índice de desperdício energético.

 

Relativamente aos recursos energéticos nucleares que ocorrem na natureza, importa sublinhar o seguinte: a capacidade da contribuição desses recursos para a satisfação de necessidades de consumo, será em termos energéticos, comparável às do petróleo e do gás natural, se esses recursos forem utilizados em centrais nucleares dos tipos actualmente operacionais e em funcionamento, Os recursos assegurados não durariam muito para além de meados do século, talvez ainda até cerca de 2070. A possível descoberta de novos jazigos apenas levaria a atrasar por algum tempo o inevitável esgotamento dos recursos.[viii]

 

A energia nuclear

 

Na secção anterior mostrou-se que o abastecimento energético futuro do planeta coloca questões difíceis para as quais importa encontrar soluções socialmente aceitáveis e amigas da natureza. Isto implicará certamente a procura, numa perspectiva global, de equilíbrios entre vantagens e desvantagens, nem sempre fáceis de estabelecer e de aceitar no plano mais restrito de um país ou de uma região.

 

Pensamos que em qualquer cenário que perspective uma solução viável para os próximos cem anos, a energia nuclear deverá integrar o leque das opções energéticas a ter em conta. Por outras palavras: conhecendo-se o que hoje se conhece das várias tecnologias energéticas - as já operacionais e as que se encontram em fases mais ou menos avançadas de projecto ou desenvolvimento - um complexo industrial energético que possa assegurar até ao fim do século as necessidades energéticas mundiais deverá assentar num conjunto equilibrado de fontes primárias que inclua a energia nuclear. O peso dos combustíveis fósseis deverá ir diminuindo progressivamente, ao contrário do peso das energias renováveis que deverá crescer significativamente.

 

O número de reactores nucleares hoje em funcionamento no mundo aproxima-se de 440 com uma potência eléctrica total vizinha de 360 mil milhões de watts (350 GW). Trinta e um reactores, com uma potência eléctrica total de cerca de 25GW encontram-se em construção No conjunto, 32 países possuem ou têm em construção novas centrais. O projecto mais recente, é o projecto inovador de construção pela Rússia da primeira central flutuante do mundo, equipada com dois reactores PWR de 30 MW eléctricos, cada um. A central é móvel e foi construída com o objectivo de abastecer aglomerados urbanos situados em zonas costeiras com até 200 mil habitantes. Pode ser também utilizada para desalinizar água do mar com a capacidade de produzir até 240 mil metros cúbicos de água doce por dia.

Interessa referir que após o acidente de Chernobyl a questão do melhoramento da segurança de funcionamento das centrais adquiriu maior prioridade no quadro do esforço internacional para o aperfeiçoamento do projecto e construção de novos reactores. Ao mesmo tempo obtiveram-se melhorias significativas no que respeita à disponibilidade e ao rendimento energético das centrais. Em média, nos 15 anos seguintes, foi possível passar de uma disponibilidade de cerca de 70% para cerca de 80%. Esta é uma variação considerável que permitiu uma poupança significativa no investimento em novas centrais. Ligado a estas melhorias na segurança do funcionamento está a decisão dos EUA de prolongar por mais 20 anos a validade das licenças de operação de ¾ dos 104 reactores em funcionamento no país. Vem a propósito citar um comentário colhido em número recente da conceituada revista Nature [ix]. Num artigo com o título sugestivo de "Ligado às malhas - Ascensão e queda da rede eléctrica dos EUA", o autor diz a certo passo: "(...) a rede eléctrica dos EUA e os seus clones na Europa, Ásia e América do Sul, estão hoje em crise (in trouble). Colapsos e cortes no abastecimento acontecem por toda a parte com uma periodicidade quase anual (...). Nos EUA, o preço médio da electricidade continua a subir acompanhando os preços do fuel. Só a energia gerada em centrais nucleares se tem mantido estável em termos do custo para o consumidor, e mesmo, em alguns estados, diminuiu significativamente."

 

 

A Geração IV de reactores avançados

 

Em 2001 foi criado o consórcio internacional designado por Generation IV International Forum (GIF).[x] O GIF, liderado pelos EUA, que hoje associa os seguintes países: Argentina, Brasil, Canada, China, França, Japão, Coreia do Sul, República Sul-africana, Suíça, Reino Unido, Rússia e, ainda, a União Europeia como pessoa colectiva. A Rússia e a República Popular da China juntaram-se ao grupo em 2006. O GIF identificou, a partir da experiência acumulada de projecto, construção e operação de reactores existentes de tipos conceptualmente distintos, seis tipos de reactor a desenvolver, com características adaptadas a diferentes utilizações, esperando que possam estar em condições de operação comercial até 2030, ou em alguns casos ainda antes dessa data.

Em todos estes tipos ou fileiras tecnológicas as temperaturas de funcionamento serão mais altas do que as dos reactores actuais. Em particular, quatro dos seis tipos são indicados para a produção de hidrogénio por dissociação termoquímica da água. Em todos os casos procuram-se melhores características de sustentabilidade, economia, segurança, fiabilidade e protecção contra a proliferação nuclear.

 

Na maioria dos seis sistemas a desenvolver, adopta-se o ciclo de combustível fechado para maximizar a utilização da matéria-prima energética e minimizar o volume dos resíduos de alta actividade que carecerão de armazenamento. Dos seis tipos de reactores, três são reactores reprodutores a neutrões rápidos; um funciona com neutrões de energia intermédia; e dois são reactores a neutrões de baixa energia, ditos "térmicos" como acontece com as centrais comerciais actualmente em operação comercial.

 

As potências eléctricas situam-se entre 150 e 1500MW eléctricos, sendo que um dos tipos considerados, arrefecido por chumbo líquido e de baixa potência (50 a 150 MWe), tem a particularidade de poder operar como uma "bateria" capaz de funcionar sem recarga de combustível por um período de 15 a 20 anos. Trata-se de uma unidade modular móvel que pode ser usada também para desalinização da água do mar.

 

Fusão nuclear: o projecto ITER

 

O outro projecto que interessa referir aqui é o projecto ITER - International Thermonuclear Experimental Reactor [xi]. O ITER é um projecto internacional partilhado (joint project) de I&D que procura demonstrar a viabilidade científica e técnica da utilização da fusão nuclear como fonte de energia susceptível de contribuir para a cobertura das necessidades energéticas da humanidade. O consórcio ITER envolve a União Europeia (representada pela EURATOM), o Japão, a República Popular da China, a Índia, a República da Coreia, a Federação Russa e os EUA. O ITER conta com um orçamento de investimento de 5 mil milhões de euros a que se juntará outro tanto para o funcionamento durante a fase de operação. Esta deverá decorrer entre 2016 e 2036. O reactor será instalado em Cadarache, no sul de França, onde estão já em curso os trabalhos de terraplanagem necessários à implantação do reactor.

 

A fusão de núcleos leves é a fonte de energia do sol e das estrelas. O projecto ITER é um passo no processo tendente a demonstrar que esta fonte de energia pode ser usada na terra para a produção de electricidade de forma segura e amiga do ambiente, partindo de um combustível abundante.

O passo seguinte no caminho da exploração industrial da energia de fusão será a construção de um reactor de demonstração - o DEMO. A previsão actual relativamente à entrada em funcionamento do reactor DEMO é que ela deverá ocorrer entre 30 a 35 anos após o início da construção do protótipo experimental ITER. O início da construção deste último está previsto para 2009 o que atirará a entrada em funcionamento do DEMO para meados do século.

Ciências e Técnicas Nucleares: a situação em Portugal

 

Importa dizer que a tecnologia nuclear tem no mundo contemporâneo outras aplicações além da geração de energia eléctrica em centrais. Essas aplicações estão presentes em numerosos ramos da produção industrial, nos cuidados de saúde e noutras ciências aplicadas.[xii]

Citando Díaz-Balart: "Exige-se um conjunto vasto de conhecimentos, de ordem científica, tecnológica e outras, relacionadas com aquelas, para que qualquer país possa desenvolver, construir e operar um ramo industrial nuclear. Naqueles países que não tenham podido dominar estas áreas num próximo futuro, a tarefa tornar-se-á impossível por muitas décadas a vir." E acrescenta: "Estou convencido de que a assimilação da energia nuclear terá de ser desenvolvida de mãos dadas com a criação de uma cultura nuclear global bem compreendida pela generalidade das pessoas."

 

Em Portugal, verifica-se há várias décadas o progressivo empobrecimento da capacidade científica e técnica necessária ao desenvolvimento das aplicações das ciências e técnicas nucleares. Empobrecimento de recursos humanos, de equipamentos e instalações, que afecta também as indispensáveis acções de protecção e vigilância radiológica do meio ambiente, o controlo radiológico dos trabalhadores profissionalmente expostos a radiações e a fiscalização dos equipamentos que utilizam radiações e radioisótopos, nomeadamente, na área da saúde e em diversas áreas do sector produtivo onde são utilizadas para fins de controlo de processos industriais ou em que se processam matérias primas (carvão, petróleo, argilas plásticas e outras) que contêm isótopos radioactivos naturais. A situação, degradou-se não só no que respeita aos meios, humanos, materiais e financeiros existentes mas também à respectiva estrutura organizativa e de gestão e à própria legislação e regulamentação específica que o sector exige, a ponto de não haver condições para dar seguimento adequado a obrigações e compromissos internacionais decorrentes da qualidade de membro da Agência Internacional de Energia Atómica e da União Europeia. Há prazos de transposição de directivas europeias largamente ultrapassados com o risco de pagamento de pesadas multas. A actividade de dosimetria pessoal foi reduzida bem como o controlo radiológico de águas para consumo humano, por falta de recursos de pessoal aliada à falta de condições para conseguir a acreditação de laboratórios, legalmente exigida para a realização de algumas das actividades referidas. Parte destes serviços transitaram para empresas do sector privado verificando-se a subcontratação a entidades estrangeiras da prestação dos respectivos serviços.

Em Portugal, os meios técnicos especializados na área das ciências e tecnologias nucleares, estão, no essencial, concentrados no Instituto Tecnológico e Nuclear que foi parte integrante da Junta de Energia Nuclear (o equivalente nacional do CEA francês ou da USAEC norte-americana) criada em 1954 e extinta em Outubro de 1979. O actual ITN tem sido o depositário, em condições muito difíceis, de uma experiência acumulada ao longo de quase meio século (foi inaugurado em 1961) na área das ciências e técnicas nucleares. Na recente "reforma" dos Laboratórios do Estado foi atingido por uma das peças da nova legislação disparada pelo Ministro Gago, que lhe confere entre outras atribuições as seguintes[xiii]:

(...)

d) Apoiar, científica e tecnicamente, o Governo em relações com organismos internacionais com actuação na área das tecnologias nucleares, bem como assegurar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres resultantes de instrumentos internacionais relativos a este domínio;

e) Assegurar a monitorização radiológica, em todo o território nacional;

(...)

São bonitas intenções destinadas a não passar do papel sem o indispensável reforço e rejuvenescimento de quadros, equipamentos e instalações. Neste momento, e a título de exemplo da situação de precariedade que se vive, importa dizer que alguns serviços da área da protecção radiológica sobrevivem à custa do trabalho de jovens bolseiros e avençados que cobre necessidades permanentes desses serviços.

 

Reportando-nos às palavras de Díaz-Balart cujo sentido profundo não nos deve escapar: a primeira tarefa, necessária e urgente, a levar por diante no país é a de criar o potencial humano - também aqui a maior e mais decisiva riqueza nacional - com o conhecimento e a experiência de que depende qualquer futuro desenvolvimento das aplicações civis da energia nuclear em Portugal, em condições vantajosas para o país, no quadro de um mundo em transformação.

Consideramos que nas presentes condições seria errado introduzir no país a geração de energia eléctrica por via nuclear, ou seja, uma central electro-nuclear, não só pelas razões aduzidas nos parágrafos anteriores - a incipiência e inoperacionalidade relativas do sistema científico e técnico nacional nesta área - como também pelo facto de, num futuro que se espera não estar a mais do que 15 ou 20 anos de distância, se virem a concretizar soluções tecnológicas que permitam encarar a indústria energética nuclear como uma solução, ainda que transitória, susceptível de dar uma contribuição significativa a médio prazo (pelo menos um século) para o abastecimento energético mundial com o aproveitamento racional dos recursos minerais existentes (urânio e tório), uma redução substancial da produção de resíduos tóxicos (radioactivos e químicos); maior segurança e melhor rendimento energético, e, por último mas não de menor importância, com reduzido risco de proliferação nuclear.[xiv]

 

  • Entretanto importa salientar, novamente recordando, as palavras de Díaz-Balart, que as técnicas nucleares têm um vastíssimo domínio de aplicações não energéticas. Em particular, as aplicações no campo da Medicina Nuclear onde se recorre a fontes de radiação e a isótopos radioactivos para fins de diagnóstico e terapêutica. Esta área, conheceu nas últimas décadas, em Portugal, no sector da saúde, um significativo incremento, com a aquisição de equipamentos modernos, treino e formação de pessoal técnico e superior especializado, e algum trabalho de I&D. Entretanto, mantém-se um considerável atraso na capacidade nacional de prestação de cuidados de saúde nesta área quando comparada a situação com a existente em países mais avançados, abrindo-se-lhe um vasto campo de expansão de acordo com as necessidades da população portuguesa.

 

A necessidade de formação de profissionais especializados no campo das ciências e técnicas nucleares, acima sublinhada, exige a disponibilidade de instalações modernas adequadas e devidamente equipadas, operadas e mantidas; são disso exemplo, um reactor nuclear de investigação, aceleradores de partículas ou lasers de potência. Por regra, essas instalações e equipamentos são também indispensáveis, e devem ser utilizadas, na formação de estudantes nas ciências básicas ou aplicadas, seja na Física, na Química, na Biologia, nas Ciências Ambientais, e outras mais, independentemente da orientação futura desses estudantes e dos ramos de actividade em que virão a integrar-se.

 

Frederico Carvalho

22 de Maio de 2004

 

Referências:

[1]Fidel Castro Díaz-Balart, "Energia y preservación del medio ambiente: articulación escabrosa para el siglo XXI", Nucleus, 40, 2006, pp.21-29

[2]Gert G. Harigel, "Is there a need for nuclear power?" INES Newsletter No.52, April 2006

[3]Fidel Castro Díaz-Balart, "Nuclear Energy: Environmental Danger or Solution for the 21st Century?" First English Edition 2005

 



[i] Bento de Jesus Caraça, "A cultura integral do indivíduo - problema central do nosso tempo", Conferência realizada na União Cultural "Mocidade Livre", em 25 de Maio de 1933

[ii] Tonelada equivalente de petróleo (tep), em inglês (ton of oil equivalent: toe) é uma unidade de energia que corresponde ao conteúdo energético de 1 t de petróleo. É usada, sobretudo por economistas e políticos, para exprimir a produção ou o consumo de energia de um país.

1 TOE corresponde a 41,85 GJ ou 11,626 MWh ou ainda à energia produzida pela queima de 1,615 t de carvão de referência. O exajoule vale 1018 J ou mil milhões de gigajoules.

[iii] Castro Díaz-Balart (ref.3, p.245)

[iv] No artigo "Powering the future" (in National Geographic, vol. 208, n.º 2, Agosto 2005), Michael Parfit mostra que para substituir a fracção da energia eléctrica consumida em Nova York proveniente da queima de combustíveis fósseis - 60% do consumo total de electricidade da cidade - seria necessário cobrir com painéis solares uma área equivalente a 190 km2 , com uma potência eléctrica de pico de cerca de 25 400 MW. No caso de se recorrer a geradores eólicos, os valores da área a utilizar e da potência de pico seriam, respectivamente, 28 km2 e 10200 MW. No caso do abastecimento ser feito com recurso a centrais nucleares, a área a utilizar seria de 5,2 km2 e a potência eléctrica de 4000 MW.

[v] v. "Is Ethanol for the long Haul?", Matthew L. Wald, Scientific American, Vol. 296, N.º 1, Janeiro 2007, e também , "Condenados a muerte premature por hambre y sed más de 3 mil millones de personas en el mundo", Fidel Castro Ruz, Granma, Año 43, N.º 75, 29 de Março de 2007

[vi] ibid. (p.241)

[vii] Gert G. Harigel (ref. 2)

[viii] ibid. (p.99-100).

[ix] Nature, Vol 447, 10 de Maio de 2007, pp.145-146

[x] Generation IV Nuclear Reactors UIC Briefing Paper, http://www.uic.com.au/nip77.htm

[xi] IAEA Bulletin, Vol. 48/2, Março de 2007, pp.29-31 e http://www.iter.org/

[xii] v. em Castro Díaz-Balart (ref.3, pp.80-97) informação pormenorizada sobre o tema

[xiii] Decreto-Lei n.º 156/2007,de 27 de Abril, in Diário da República, 1.a série-N.º 82-27 de Abril de 2007, p.2759

[xiv] Já na segunda metade do século e com todas as incertezas que lhe estão associadas, poderia ter início a exploração industrial da energia de fusão nuclear.