Declaração de Voto

Declaração de Voto ao Relatório Final da Comissão de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo

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Considerações iniciais

O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português salienta, antes de mais, o relevo e a importância política que teve a proposta do PCP para a constituição da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo, ao processo que conduziu à aplicação da medida de resolução e às suas consequências, nomeadamente quanto aos desenvolvimentos e opções relativos ao GES, ao BES e ao Novo Banco. Relevo e importância políticos que permitiram uma perceção pública sobre a realidade do mundo do capital financeiro, bem como sobre o comportamento e funcionamento do interior de um grupo monopolista que foi, durante décadas, alimentado pelos próprios governos, fazendo uso de instrumentos do Estado. Ao mesmo tempo, a constituição desta Comissão de Inquérito permitiu à Assembleia da República aprofundar muito o conhecimento sobre procedimentos, insuficiências matriciais e conjunturais do sistema financeiro e do chamado sistema de supervisão, bem como compreender a natureza predatória dos grandes grupos económicos e financeiros.

Os trabalhos da Comissão estão efetivamente refletidos no relatório apresentado pelo Sr. Deputado Relator Pedro Saraiva, sendo que o capítulo sobre o apuramento dos factos resume, de forma tanto quanto possível, fiel, o conjunto de práticas identificadas como características do Grupo Espírito Santo e Grupo Banco Espírito Santo, apesar das eventuais divergências que se verificam entre as perspetivas ideológicas do Grupo Parlamentar do PCP e do próprio Relator. A disponibilidade de tempo reduzida impediu um debate mais profundo sobre o apuramento dos factos, mas o PCP entende estar esse capítulo composto de forma objetiva, sem dedução política e muitas vezes, como aliás, se saúda, meramente descritivo. O capítulo sobre “apuramento de factos” constitui por isso, um importante instrumento de trabalho para a Assembleia da República, para os Governos e para os que pretendam debruçar-se sobre as formas de funcionamento de um grande grupo económico, formas essas que aliás, reproduzem e mimetizam o comportamento de inúmeros grupos nacionais e transnacionais, alguns deles já detetados em Portugal e igualmente alvos de inquéritos parlamentares. Igualmente, o referido capítulo indica factos que em boa parte não correspondem a ilegalidades – antes estão devidamente chancelados pela legislação vigente – mas que resultam claramente na degradação da estabilidade financeira, da economia, do interesse nacional, em prejuízo do bem-estar comum e em função apenas da concentração de lucros e riqueza, obtida muitas vezes apenas através de mecanismos de especulação capitalista – como rendas e juros – outras vezes da artificialização e branqueamento de balanços, evasão fiscal e outras formas de maximização do processo de acumulação, mas sempre tendo como base a riqueza produzida por quem trabalha e a predação do sector produtivo da economia. Aliás, isso mesmo se verificou no interior do próprio grupo.

O Grupo Parlamentar do PCP empenhou todos os esforços, não apenas para que o mais vasto possível conjunto de factos relevantes fosse apurado, como para que resultasse evidente a natureza sistémica dos problemas que originam a instabilidade do sistema financeiro com custos para os portugueses. Essa natureza é incompatível com teses de que os problemas têm origem em casos isolados, em questões comportamentais, morais ou de carácter individual, em falhas pontuais do sistema, quer sejam no plano político, quer sejam no plano da supervisão. Além disso, destaca a forma como decorreram os trabalhos da comissão no que à sua esfera de competências diz respeito, sendo que não existiram obstáculos políticos, com exceção do bloqueio imposto pela maioria parlamentar PSD/CDS à obtenção de esclarecimentos por parte do Sr. Presidente da República. Todavia, o mesmo não se pode dizer sobre as condicionantes externas ao trabalho da comissão: o atraso nas respostas, a invocação constante de segredos e formas várias de sigilo, o truncamento de documentos e a introdução de constantes obstáculos ao real apuramento de beneficiários da delapidação do BES foram um ruído persistente que tolheu, objetivamente as capacidades da CPI. Daí que tenha o PCP proposto na Assembleia da República, através de Projeto de Resolução, a constituição de uma unidade técnica para o apuramento desses beneficiários, complementando o escopo e as capacidades da CPI. Tal iniciativa, lamentavelmente, não obteve o apoio da maioria e contou com a abstenção do Partido Socialista.

O Grupo Parlamentar do PCP partiu para o trabalho nesta Comissão de Inquérito sem iludir as conceções e propostas que sempre apresentou sobre o sistema financeiro e a necessidade de o colocar ao serviço do povo e do país, rompendo com o dogma e preconceito da banca privada como virtude da economia desenvolvida. O caso BES mostra com inolvidável transparência a incompatibilidade racional e prática entre a banca privada e uma política de investimento e de crédito ao serviço de interesses comuns e coletivos.

O Grupo Parlamentar do PCP não apresentaria um relatório semelhante ao que ora se vota, por motivos vários. Contudo, não deixa de referenciar a síntese realizada pelo Relator, nem tampouco o esforço concreto real que foi levado a cabo para que as conclusões fossem tanto mais amplas quanto possível. Tal esforço, porém, não pode iludir questões políticas, nem discordâncias de fundo, políticas, ideológicas, pragmáticas e conceptuais. Tais questões e divergências não podem igualmente ser suprimidas por uma necessidade de consenso parlamentar como forma de credibilização do trabalho da CPI, como tem sido sugerido. Antes pelo contrário, de uma análise de factos indicados por unanimidade, devem decorrer conclusões e recomendações políticas necessariamente diferentes por ser diversa a composição política da comissão e por ser natural que dos mesmos factos não se retirem as mesmas conclusões. A riqueza de um trabalho de inquérito parlamentar também assenta na multiplicidade de pontos de vista, base aliás da sua democraticidade. O PCP não aceitou, por exemplo, desde o primeiro momento, que a visão de PSD, mas também – em boa medida de PS e CDS – passasse como forma única de intervenção, consistindo na construção de um monstro moral, no sacrifício de um banqueiro caído em desgraça, independentemente das suas grandes responsabilidades reais e aliás bem descritas e identificadas, para assegurar a salvação de responsáveis políticos vários e do sistema financeiro privado em geral. Tal divergência não poderia deixar de estar presente no momento das votações sobre um Relatório que, apesar da sua riqueza, continua a branquear uma componente fundamental das responsabilidades: a política.

Se é verdade que o Relatório apresentado faz uma descrição exaustiva de factos e de práticas legais e ilegais, bem como aponta falhas e deficiências mais ou menos circunstanciais no sistema de supervisão, não deixa de ser verdade que é exclusivamente nesses pilares que o Relatório faz assentar as suas conclusões. Ora, o Relatório ignora que o Banco Espírito Santo e a Tranquilidade foram entregues à família Espírito Santo no processo de restauração capitalista e monopolista desencadeado contra as conquistas daa Revolução de Abril. É sintomático que o relator consiga mesmo aceitar um vasto conjunto de propostas de alteração apresentadas pelo Grupo Parlamentar do PCP – o que saudamos e valorizamos – mas não integre quaisquer considerações sobre o papel de sucessivos Governos, PS, PSD, com ou sem CDS, no que toca à consolidação e promoção do Grupo GBES/GES. Tal apagamento de responsabilidades não é compatível, na visão do PCP com um relatório de Comissão de Inquérito que visa precisamente apurar o conjunto dos atos públicos e políticos que originaram a situação que agora se deve relatar. A entrega da Tranquilidade em 1990 e depois do BES, em 1991, à família, pela mão do Governo PSD de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro e de Mário Soares como Presidente da República, marcam um momento determinante para o que viria a suceder. Tal como a família adquiriu o Grupo sem capitais, com financiamento da Caixa Geral de Depósitos e com apoio do Crédit Agricóle, angariado por Mário Soares, o Grupo veio a ser constituído como império precisamente da mesma forma, sobre crédito e dívida, predação dos sectores produtivos, benefícios fiscais e especulação financeira.

O Relatório ignora que o BES foi entregue à família e financiado com apoios públicos e que o BES – apenas o BES – distribuiu 4 mil milhões em dividendos ao longo de pouco mais de duas décadas, fazendo deles um usufruto estritamente privado, apesar de ter sido socializado o prejuízo resultante.

Da natureza sistémica das crises no sistema financeiro

A predação do capital produtivo pelo capital financeiro, resultado direto do desenvolvimento do capitalismo, tornou cativas das instituições de crédito praticamente todas as atividades económicas, independentemente da sua dimensão. As operações que geram esse fenómeno são várias e prendem-se com aspetos e dimensões diversos do capitalismo, estando, no entanto, a quase totalidade descrita e até mesmo prevista por Marx e outros teóricos marxistas. Lenine, no seu estudo sobre a fase superior do capitalismo, aponta como natural a fusão entre o capital bancário e o capital produtivo (industrial), fusão que cria o designado capital financeiro, e que subordina o segundo ao primeiro com custos para a economia e com graves consequências na divisão internacional do trabalho e no equilíbrio económico e social, abrindo ainda mais o caminho para os conflitos, a agressividade e a guerra, resultados diretos das contradições geradas pelas disputas regionais e económicas. A criação e crescimento de grupos de génese monopolista é uma das fases do desenvolvimento da organização capitalista. Pela sua própria natureza de acumulação, o capitalismo tende para o monopólio, ainda que assimptoticamente em alguns casos e, nesses, ficando pelo oligopólio. Em todo o caso, os grandes grupos económicos e financeiros constituem-se, a escalas diversas como grupos monopolistas na medida em que a sua matriz é a da acumulação e o seu funcionamento, o da canalização do crédito e do dinheiro em função estrita dos seu interesse de maximização dos lucros.

A capacidade de condicionar os fluxos, as direções e os sentidos do crédito influencia no concreto o desenvolvimento das forças produtivas, as opções económicas e políticas e o sucesso ou falhanço de uma determinada atividade. A concentração dessa capacidade, como sucede em Portugal e nos restantes países da União Europeia, nas mãos de entidades privadas, de acionistas mais ou menos concentrados ou pulverizados, cotadas ou não em bolsas, deduz-se, implica o poder de determinar o sentido do desenvolvimento das forças produtivas, as opções económicas e políticas e o sucesso ou falhanço de uma determinada atividade.

O mero exercício de dedução, sem considerações subjetivas, conduz-nos a uma conclusão incontornável: a propriedade privada da banca significa a colocação de um tremendo poder político, económico, financeiro, nas mãos dos acionistas da instituição bancária, poder esse que bule e se sobrepõe – em muitos casos já domina – ao exercício do poder político, em sentido contrário ao disposto na lei, principalmente na Constituição da República Portuguesa, onde se pode ler claramente que o poder económico se subordina ao poder político e não o inverso. Também daí decorre que, no âmbito da organização económica, a mesma Constituição preveja como papel do estado o combate a formas de organização monopolista.

Do contexto nacional – a Privatização como abdicação do interesse nacional

A nacionalização da banca comercial nacional, em 14 de Março de 1975 foi uma necessidade imposta pelo comportamento que os grupos económicos assumiam contra a revolução, assim usando o poder económico como forma de conter os avanços democráticos mas veio também a constituir-se como elemento fundamental da política económica do país. A capacidade de intervir e controlar como propriedade pública e democraticamente escrutinada e condicionada a banca, veio a significar também a capacidade de fazer uma gestão política do crédito, da dívida, do investimento, em função dos interesses nacionais, do interesse colectivo, num exercício de soberania e democracia como até aí nunca tinha sido visto em Portugal.

A recuperação capitalista, monopolista e latifundista que se inicia com os governos de PS/Mário Soares e segue com os seguintes, que vêm mantendo a forma em alternância até aos dias de hoje – PS, PSD, com ou sem o CDS – impôs a perda dessa componente da soberania popular sobre a gestão do crédito e do dinheiro com a entrega dos principais bancos às famílias a que pertenciam antes de Abril de 1974 ou a outros novos acionistas.

O ataque às conquistas de Abril pelas mãos dos de governos PS, PSD e CDS ao mesmo tempo que faziam a apologia e a imposição do modernismo de uma nova estirpe de capitalismo: um capitalismo aberto e moderno, globalizado e humano. Eis os resultados do prosseguimento das políticas de direita. Ao longo das décadas, as privatizações das principais alavancas da economia, das que aqui destacamos a banca, traduziram-se em efeitos concretos junto dos trabalhadores, da política e da economia nacional e esses efeitos estão hoje à vista de quem puder debruçar-se sobre o sistema financeiro português e a economia em geral.

Um olhar sobre o sistema financeiro português, partindo de uma perspetiva crítica, mas sempre objetiva e sem mistificações, levar-nos-á a uma viagem que se inicia com a privatização das grandes instituições financeiras e de crédito e com a forma como foram utilizadas como bolsas de acumulação à custa da produção nacional, com a especulação e a extorsão como instrumentos preferenciais e o apoio do Estado como chancela de sempre. O enquadramento europeu, legislativo e político, a união económica e monetária e as fundas implicações nos custos de capital em cada país são paragens obrigatórias e pontos de referência históricos na forma como o capital financeiro consolidou o seu domínio sobre a economia. A captura do poder político e a completa incapacidade – natural e matricial – dos ditos reguladores e supervisores pelo poder económico, seja por submissão opcional e interesse de classe, seja por insuficiência ante o gigantismo de uma parte desses grupos resultou na denúncia da farsa montada em torno de um sistema eminentemente fiduciário nas mãos de privados. O caso do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo, é um dos que, como poucos, reúne com tanta clareza o conjunto de aspetos que resultam do funcionamento do sistema financeiro em capitalismo, desde o funcionamento interno do banco e do grupo, às suas relações com o chamado sistema de supervisão, passando pela sua relação com o tecido económico onde atua e onde tem interesses. A parada de ilegalidades cometidas, o desfile de ricos fabricados pela evasão fiscal e pela concessão de crédito sem garantias, são acompanhados de um vasto conjunto de operações consideradas, para todos os efeitos, legais que concorrem igualmente para o cenário final: o do colapso de um grupo económico e financeiro que, só pela sua dimensão, representava – como ficou claro além de quaisquer dúvidas – uma ameaça para a estabilidade do sistema financeiro.

A história do BES e do GES, das componentes financeira e não financeira desta miríade empresarial, pode constituir um elemento documental que ilustra com grande nitidez e à escala nacional, o papel e a natureza do capitalismo, aprofundando e consolidando teses e concepções dos comunistas, desde a definição de Capital por Karl Marx. A história do desenvolvimento do capitalismo em Portugal está intimamente ligada aos grupos económicos que dominaram durante longos períodos de tempo a economia, a produção e a finança, com governos colocando o Estado integralmente ao seu serviço. A promiscuidade entre os grupos económicos e o Estado durante o fascismo atingiu proporções quase totais. Tal como Álvaro Cunhal denuncia com grande pormenor no Relatório ao Comité Central que vem a dar origem ao documento “Rumo à Vitória”, os membros do Conselho e altos dirigentes do Estado eram simultaneamente acionistas de uma boa parte das grandes empresas portuguesas em cujo capital social o Estado chegava mesmo a participar, não para exercer um poder público ao serviço da população, mas para amparar as aventuras e os lucros dos grandes patrões. A colocação do Estado ao serviço dos monopólios serviu os grandes grupos que se implantaram em Portugal, bem como os alimentou e defendeu numa relação de mútuo fortalecimento. Entre esses Grupos, encontra-se incontornavelmente o Grupo Espírito Santo.

Ao olhar para o que sucedeu no caso BES/GES, é imprescindível observar a génese, o desenvolvimento, os fluxos e refluxos, a nacionalização em 75, a privatização em 91, o crescimento sem limites e com o apoio das políticas de sucessivos Governos, a promiscuidade com outras grandes empresas de dimensão nacional e internacional, a ramificação tentacular do grupo por vários sectores de atividade, pela esfera política e a captura de uma boa parte do tecido económico nacional constituído por pequenas e médias empresas através de rendas e juros, finalmente, o seu colapso por descapitalização do BES que era a base de um império constituído sobre dívida e crédito.

Da atuação do XIX Governo Constitucional

A forma como o Governo PSD/CDS não só não cumpriu o seu dever de ser garante último da estabilidade financeira, como contribuiu para empenhar recursos públicos na salvação de uma instituição, socializando prejuízos e funcionando como agente de limpeza de ativos financeiros não pode, de forma alguma, ser minimizada no âmbito das conclusões da Comissão. Em primeiro lugar porque tal branqueamento das responsabilidades políticas não corresponde nem responde à realidade, e em segundo lugar porque não refletir sobre o enquadramento político e ideológico, que se traduz no legislativo, é ignorar uma necessidade absolutamente fundamental: a de tomar medidas para que nunca mais possa suceder o que sucedeu no BPN, no BPP, no Banif, no BCP e no BES. Ora, para tal, as conclusões desta Comissão, não podem deixar de fora as questões políticas e as responsabilidades políticas, tal como, em parte, já sucedeu em passadas Comissões de Inquérito Parlamentar.

O Governo PSD e CDS não se limitou, como o relatório de certa forma tenta insinuar, a não intervir no sentido de salvar um Grupo Privado. Aliás, as responsabilidades de PSD e CDS na ajuda e alimentação deste Grupo vão muito além das deste Governo, sendo que perpassam vários mandatos governamentais em que a concessão, contratação, parceria, atribuição de negócios por parte do Estado, criaram uma autêntica hidra económica e financeira, cuja dimensão, por si só, ameaçava a estabilidade do sistema financeiro.

Mas mais do que isso, tal como se pode verificar nas propostas de alteração apresentadas pelo PCP ao Relatório proposto pelo Sr. Deputado Relator (anexas a esta declaração de voto), a atuação do Governo foi fonte de problemas concretos. Entre esses problemas concretos encontra-se o resultado do processo de reembolso de investimentos em papel comercial do GES, gerado em parte pela incapacidade do Governo para salvaguardar esses interesses aquando da aplicação da medida de resolução. Mas as responsabilidades do Governo vão muito mais longe: o Governo não agiu em defesa do interesse nacional, mas apenas em sintonia com a sua matriz de Governo ao serviço dos grandes grupos económicos, não de um ou outro grupo específico, mas do sistema no seu conjunto. Por isso mesmo, apesar de ser claro desde há muito, que a medida que se impunha era o congelamento e imobilização de ativos, empresas e até património, do GES e dos seus principais acionistas, bem como a nacionalização de empresas como a Tranquilidade e a ES Saúde, o Governo limitou-se a “deixar o mercado funcionar”, remetendo-se para o papel de “entidade reguladora”, papel esse que a Constituição da República Portuguesa não lhe atribui. O Governo não ponderou intervir nos privilégios dos banqueiros e dos grandes acionistas do BES, não tanto por um compromisso com os próprios – que a Comissão não pôde comprovar nem negar – mas por um compromisso de fundo com o sistema capitalista e o domínio do capital monopolista que coloca a economia ao serviço da acumulação, fazendo da banca um dos mais importantes e cruciais instrumentos, não tendo sequer equacionado uma solução que pudesse – de facto – não comprometer recursos retirados aos portugueses.

A própria inépcia e incapacidade de atuação do Banco de Portugal e da CMVM estão intimamente ligadas a uma política que consiste em fazer-nos crer confiável aquilo que jamais pode merecer confiança. A simples conceção de que o Banco de Portugal e a CMVM, aliás o conjunto dos supervisores, regulam ou supervisionam seja o que for cai por terra observando a sucessão de casos de colapso de bancos privados em Portugal. O Banco de Portugal, particularmente, neste caso como em outros, não garantiu fiabilidade no sistema bancário, apenas a forjou publicamente, para evitar uma corrida aos depósitos, assim mostrando à última consequência que é impossível assegurar a estabilidade do sistema financeiro através de um supervisor enquanto essa estabilidade for uma prerrogativa do supervisionado. Ora, nesta construção, neste sistema legislativo, têm também responsabilidade o Governo que legisla, o Governo que submete o país às imposições da União Europeia, o Governo que coloca o funcionamento do mercado de capitais e a liberdade de acumulação por um grupo reduzido de grandes capitalistas acima da liberdade de um povo inteiro.

O Voto do Grupo Parlamentar do PCP

Por tudo o acima exposto, o Grupo Parlamentar do PCP não pode votar favoravelmente as conclusões do Relatório apresentado à Comissão de Inquérito, não deixando de votar favoravelmente o capítulo sobre o “apuramento dos factos”. Já sobre as recomendações apresentadas pelo Relatório, o Grupo Parlamentar do PCP afirma que, apesar de não ter oposição determinada à partida quanto à sua generalidade, é importante que tais recomendações não sejam confundidas com uma solução.

Ou seja, o momento é o da assumpção de uma política de recuperação da soberania política e económica, colocando o sistema financeiro como instrumento dessa política. Ao mesmo tempo, essa é a única solução. Cada vez se torna mais evidente que o esforço coletivo e o prejuízo que o país e os trabalhadores realizam e sofrem não justificam o benefício privado de um conjunto reduzido de indivíduos. O Estado não pode dar-se ao luxo de pagar o privilégio de um grupo de cidadãos poder ser dono de um banco.

Nenhum relatório de Comissão Parlamentar de Inquérito, que tenha sido capaz de reunir o conjunto de factos e testemunhos que esta Comissão reuniu, pode omitir os reais responsáveis pela situação a que chegou o BES e o GES. Os verdadeiros responsáveis são aqueles que ao longo de muitos anos foram os seus principais acionistas e os seus gestores. Mas igualmente responsáveis são aqueles que, ao longo de décadas, protegeram e elevaram o Grupo a colosso económico e financeiro, bem como os que ao longo de décadas sustentaram as opções políticas de direita que alimentaram a ilusão de que a banca privada pode ser disciplinada, apesar de serem visíveis os comportamentos lesivos do interesse coletivo no interior de várias instituições bancárias. O simples reconhecimento que há várias formas de escapar ao controlo de supervisão deve responsabilizar aqueles que, nos sucessivos Governos, foram tentando convencer os portugueses de que a Banca – apesar de não terem os elementos que fundamentem essa posição, antes pelo contrário, saberem que os não tinham – pode ser fiável e ao mesmo tempo constituir propriedade privada, gerida ao sabor dos interesses privados dos acionistas e dos grupos que esses acionistas influenciam. Desse grupos, atentas as relações múltiplas com o poder político, não se excluem partidos políticos com responsabilidades governativas, nem Governos propriamente ditos, dirigidos por PS e PSD, com ou sem o CDS.

Da mesma forma, o contexto da União Europeia, particularmente o que resulta do desenvolvimento do processo de liberalização financeira, inscrito na Agenda de Lisboa e intimamente associado à moeda única, enquadram um sistema financeiro que funciona em paralelo com um sistema de banca sombra, como no caso BES/GES se verificou. A ausência de tutela e fiscalização está intrinsecamente ligada aos graus de liberdade com que a banca atua, sem limitações, muitas vezes sem qualquer espécie de escrutínio e com múltiplas formas de lhe não estar sujeita. O presente relatório descreve bem esses expedientes e procedimentos mas falha na responsabilização política da União Europeia e dos Governos da República que com essa política alinham sem defender a soberania nacional nos seus diversos planos.

Igualmente importante é afirmar que mais do que melhorar o desempenho dos agentes de supervisão, é preciso acabar com a farsa da supervisão cativa do próprio sistema financeiro. Mais do que agravar as penas para a prevaricação ou para a má-gestão, importa acabar com a possibilidade de esses comportamentos se verificarem. Mais do que acrescentar camadas de verniz a um sistema financeiro podre, para melhor encobrir as suas práticas de acumulação, ou para criar a ilusão de que são legítimas, importa afirmar com audácia que nenhuma extorsão é legítima, que nenhuma especulação sobre o trabalho e o interesse nacional são legítimas, independentemente do quadro regulatório em que se realizem.

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