Intervenção de João Ferreira, deputado do PCP ao Parlamento Europeu

Debate «O futuro das pescas em Portugal e a reforma da Política Comum de Pescas» - Intervenção de abertura

A situação e a evolução do sector das pescas, em Portugal, como nos demais países da União Europeia, é inseparável da orientação, do conteúdo e dos efeitos da Política Comum de Pescas.

Em Portugal, o país da União Europeia com a maior Zona Económica Exclusiva, o sector tem uma importância estratégica evidente, para o abastecimento público de pescado às populações, para o equilíbrio da balança alimentar, para o desenvolvimento e bem-estar socioeconómico das comunidades costeiras, para o desenvolvimento local, a criação de emprego, as actividades económicas a montante e a jusante da pesca, para a manutenção da cultura e da tradição locais.

Não obstante esta importância e o seu enorme potencial, o sector das pescas sofreu nas últimas duas décadas um acentuado declínio e encontra-se hoje numa situação de crise económica e social profunda.

Neste contexto, torna-se imperioso discutir de que forma a actual revisão da Política Comum de Pescas irá influenciar o presente e o futuro do sector. Esta iniciativa insere-se neste objectivo. Connosco, nesta reflexão, estão representantes de áreas diversas ligadas à pesca, que daqui queremos saudar. Permitam-me que saliente a presença de representantes de partidos membros do GUE/NGL do Parlamento Europeu, da Grécia (KKE) e da Irlanda (Sin Fein), gente ligada à pesca, que sente na pele, como nós, muitos dos efeitos da política da UE para as pescas e que hoje aqui nos traz os seus testemunhos.

(Tomamos a vossa presença nesta iniciativa como um acto de solidariedade, com o nosso partido, com o nosso país e com o nosso povo. Um acto de solidariedade com a luta – que é nossa e que é também vossa – contra a agressão externa do FMI e da UE, lá como cá, com terríveis consequências. Um acto de solidariedade que daqui vos queremos retribuir com uma calorosa saudação, que vos pedimos que transmitam aos vossos partidos.)

Sem pretender ser exaustivo, irei enunciar alguns dos aspectos que nos parecem mais significativos das propostas para a reforma da PCP, apresentadas pela Comissão Europeia. Estas propostas encontram-se em fase de discussão no Parlamento Europeu e no Conselho, as duas instituições que, através do processo de co-decisão, irão determinar, no próximos meses, o futuro da PCP
 
1. Em primeiro lugar, os objectivos da política.

Quais devem ser os objectivos de uma política de pescas? E em função disso, de que meios necessitamos para assegurar o cumprimento desses objectivos?

Uma política de pesca não é, não deve ser, uma política de conservação de recursos pesqueiros, muito embora não a dispense.

Para nós, os objectivos de uma política de pescas deverão ser necessariamente mais amplos, e passam pela garantia do abastecimento público de pescado às populações e pelo desenvolvimento das comunidades costeiras, promovendo o emprego e a melhoria das condições de vida dos pescadores, num quadro de garantia da sustentabilidade e da boa conservação dos recursos.

Estes objectivos, de indiscutível interesse público, terão de ser prosseguidos, é bom não esquecer, tendo em conta as características específicas da actividade da pesca, a sua irregularidade – determinada, se outros não houver, por óbvios condicionalismos naturais. Tal implica a necessidade de canalizar para o sector determinados apoios públicos, sejam nacionais, sejam (no quadro da PCP) comunitários.

É outra a visão da Comissão Europeia. Os objectivos da PCP, e por conseguinte os da sua reforma, são enunciados de forma difusa e confusa. Não são convenientemente tidas em conta as três dimensões essenciais e indissociáveis de uma política de pescas: a ambiental, a económica e a social. Tal não é inocente. O objectivo confesso da Comissão é a diminuição do financiamento público da PCP, e a sua crescente “orientação para o mercado”. Afirma a Comissão que, cito, “o sector da pesca deve ser eficiente e financeiramente sólido, sem necessitar de apoio público”. E adianta ainda que deverá ser o “próprio mercado o motor de um sector da pesca forte e rentável”.

2. Um segundo aspecto a subinhar prende-se com a enorme diversidade que caracteriza as pescas na UE.

A realidade das pescas na UE é complexa, sendo grande a diversidade existente entre os diferentes países – ao nível das respectivas frotas pesqueiras, das artes de pesca, dos recursos pesqueiros e do seu estado de conservação, e dos hábitos de consumo da população. Esta grande diversidade exige uma gestão de proximidade, que tenha em conta as especificidades de cada país e de cada zona de pesca, que envolva o sector e as comunidades costeiras na definição e na execução das políticas. Uma gestão que se apoie no conhecimento científico, o que requer o desenvolvimento da investigação e esforços persistentes de apoio, em meios materiais e humanos, aos institutos e laboratórios de investigação, neste domínio – e não a sua desarticulação e sufoco financeiro, como vem sucedendo em Portugal.

Na proposta de reforma que apresentou, a Comissão Europeia mantém, no essencial, a mesma gestão centralizada, distante da realidade e não a tendo em conta, que tem prevalecido até aqui. Uma gestão que, no essencial, ignora o sector e as suas posições na hora de definir as políticas.

O actual quadro, que limita a participação dos pescadores aos Conselhos Consultivos Regionais, tendo em conta a experiência concreta do funcionamento destas estruturas nos últimos anos, (pese embora algumas experiências positivas) é manifestamente insuficiente.

Esta opção por uma gestão centralizada está em linha com os condicionalismos e imposições do Tratado de Lisboa, que veio estabelecer como uma "competência exclusiva" da UE a "conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da PCP". Condicionalismos tanto mais gravosos quanto foram acompanhados de uma alteração (desfavorável a Portugal) do peso dos diferentes Estados-Membros, quer no Conselho quer no Parlamento Europeu, reforçando consideravelmente o poder dos seis Estados mais populosos. Portugal – o país da UE com a maior ZEE – tem numa e noutra instituição não mais do que cerca de 2 e 3% dos votos e dos lugares de representação, respectivamente.

Com esta proposta, a Comissão Europeia decide ignorar a realidade. Ignora a enorme diversidade de situações nos diferentes países, e faz caracterizações genéricas da situação. Refere-se à “sobrecapacidade da frota”. Mas nunca apresentou os estudos – que por diversas vezes pedimos – de caracterização das frotas, das artes de pesca e do estado de conservação dos recursos – que sustentem essa “sobrecapacidade”, que a fundamentem de forma rigorosa e circunstanciada.

Talvez porque esses estudos, em muitos casos, não existem. Com efeito, persiste uma grande incerteza e desconhecimento sobre o estado de conservação de muitos dos stocks pesqueiros comercialmente explorados. Também a isto não se dá a devida resposta, com o necessário reforço dos meios dedicados à investigação.

A comissão refere-se à "frota europeia", quando o que existe são frotas nacionais, dos diferentes Estados-Membros – frotas distintas e com evolução também distinta ao longo dos últimos anos.

Na opinião da Comissão, o que é preciso é abater frota. Abater, indiscriminadamente, sem cuidar do quê ou de onde. Será o mercado a decidir onde e como se efectuará essa redução. Factores como o estado dos recursos em cada zona de pesca e as artes de pesca utilizadas (mais ou menos depredadoras dos recursos), serão assim pura e simplesmente ignorados para valer, apenas e só, a lei do mais forte; a lei dos operadores com maior peso económico e financeiro ao nível da UE. Os mais fracos, do ponto de vista económico e financeiro, serão eliminados.

3. Isto leva-nos ao terceiro aspecto a considerar, as chamadas concessões individuais transferíveis.

Estamos provavelmente perante o aspecto mais gravoso desta proposta de reforma. Embora com nova roupagem, estamos perante a mesma proposta que foi já apresentada (e recusada) em 2002, de introdução de um sistema de direitos de pesca individuais transferíveis. A Comissão pretende que o acesso aos recursos pesqueiros passe a depender da posse de direitos ou concessões. Essas concessões são “transferíveis”, ou seja comercializáveis, compram-se e vendem-se num mercado, e representam um direito de acesso aos recursos. Estamos, na prática, perante a instauração de um sistema de direitos de propriedade ou de exploração (privados) para aceder a um bem público – os recursos pesqueiros.

Pretende-se que este sistema seja obrigatório para todos os Estados-membros, podendo as autoridades nacionais excluir dele apenas os navios com menos de 12 metros de comprimento, com excepção dos que utilizam artes rebocadas. Aberto que foi o caminho pelo Tratado de Lisboa, aí temos uma modificação no sistema de gestão da PCP que atinge directamente a soberania dos Estados, no domínio da gestão e propriedade da exploração de um recurso natural da maior importância.

A própria Comissão reconhece que a concentração da actividade nos operadores de maior poderio económico e financeiro será uma das consequências inevitáveis desta autêntica privatização dos mares. Propõe, por isso, algumas medidas de salvaguarda que procurem impedir que essa concentração seja, nas suas palavras, “excessiva”.

Mas estas tratam-se de medidas que, no quadro concreto em que se aplicará a PCP, de livre concorrência no mercado único – sacrossanto princípio que tem vindo a ter prevalência sobre qualquer outro nesta UE, – (tratam-se de medidas, dizia, que) de pouco valerão. O resultado será a concentração da propriedade e da actividade num punhado de operadores, a nível nacional, numa primeira fase, mas inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, ao nível europeu. As consequências serão particularmente graves para países economicamente mais frágeis, como Portugal, e com peso preponderante dos segmentos da pequena pesca costeira e artesanal.

Cinicamente, a Comissão aponta-lhes o caminho, quando diz: (cito) “as concessões de pesca transferíveis constituem também uma solução social para as pessoas que desejam abandonar o sector, as quais podem vender os seus direitos ao valor de mercado”. Uma posição que, certamente, merecerá reflexão e resposta ao longo deste nosso encontro.

4. Um quarto aspecto a salientar diz respeito à OCM – a Organização Comum de Mercado dos produtos da pesca.

O sector da pesca enfrenta hoje uma grave crise de rendimentos, determinada por uma elevação significativa do custo dos factores de produção (em que avultam os combustíveis) e uma estagnação, ou mesmo compressão, para níveis extremamente baixos, dos preços de primeira venda do pescado. A Comissão nada faz para alterar esta situação. O caminho que continua a apresentar é simplesmente o abrir da porta para que mais e mais pescadores desistam a actividade.

Utilizando a deterioração socioeconómica do sector, procura promover o abate e a cessação definitiva de actividade de mais embarcações, concentrando ainda mais a propriedade e a actividade no sector, criando mais desemprego, degradando a vitalidade do sector e das comunidades costeiras dele mais dependentes.

A proposta de reforma da OCM dos produtos da pesca nada faz para alterar esta situação, bem pelo contrário. A opção continua a ser a do desmantelamento dos instrumentos públicos de regulação dos mercados ou a sua manutenção a níveis manifestamente insuficientes.

Aqueles que são, no papel, os objectivos da OCM – a garantia de estabilidade dos mercados dos produtos da pesca e a garantia de rendimentos justos aos produtores – continuam sem os instrumentos necessários à sua efectiva prossecução. Continuam a ser ignoradas as necessidades colocadas pelas grandes disparidades ao nível das estruturas de produção/comercialização, distribuição e transformação, de preços e de hábitos de consumo existentes nos diferentes países da UE.

As justas exigências, que o sector vem fazendo, de medidas para melhorar o preço de primeira venda do pescado e promover uma justa e adequada distribuição do valor acrescentado pela cadeia de valor do sector, como os preços de garantia (que tenham em conta os custos de produção) ou as taxas máximas de lucro, são igualmente ignoradas. Tratam-se de propostas que há muito vimos fazendo, que mantêm toda a sua necessidade e actualidade e nas quais insistiremos.

Como insistiremos também na necessidade de reconhecer as especificidades dos segmentos da pesca de pequena escala, costeira e artesanal, canalizando apoios específicos que possibilitem a renovação e modernização das frotas, a melhoria das suas condições de segurança e da sua sustentabilidade económica e ambiental.

5. Uma quinta e última nota, relativa ao futuro do Fundo Europeu das Pescas.

Anunciado com pompa esta semana que passou, o aumento das dotações do futuro fundo europeu destinado às pescas procurou ocultar o facto de serem agora diversas as áreas a financiar. A verdade é que o agora chamado Fundo Europeu para a Política Marítima e as Pescas se destina a financiar mais áreas do que o seu antecessor. Veremos assim o que sobra para o sector das pescas.

Para já, apoios anunciados para a aquicultura – com a discriminação positiva dos jovens no acesso aos apoios para entrada na actividade – incompreensivelmente, não se estendem também à pesca. Fica a pergunta: serão as pescas o parente pobre deste novo fundo?

Sobre todos os temas de que aqui vos falei, e sobre outros que certamente passarão pelo nosso debate, o PCP tem um vasto património de intervenção, de luta e de proposta, seja no plano nacional, seja no Parlamento Europeu. Um património construído em permanente e estreita ligação com o sector, que assim queremos manter. Será por isso, em diálogo e aprendendo com a experiência de todos vós, que queremos travar mais esta batalha. Uma batalha que a todos convoca e que exige a mobilização das forças necessárias para travar as perigosas intenções da Comissão Europeia e para lutar pelas propostas que permitam resolver a situação de profunda crise com que o sector das pescas se depara no nosso país, não obstante as enormes potencialidades que apresenta.

 

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