"Quem tinha razão?"
Vitor Dias no "Semanário"
1 de Outubro de 2004

 

Na sequência de uma «breve» no último “Expresso”, o “Público” de 29/9, sob o título “PSD admite revisão constitucional sobre referendo europeu”, trouxe-nos a significativa novidade de que, segundo declarações de Guilherme Silva, o PSD estará a ponderar uma revisão extraordinária da Constituição por forma a permitir que o referendo possa incidir sobre o conjunto da dita Constituição Europeia e sobre a vinculação ou não de Portugal a esse novo tratado, libertando-se assim essa consulta popular da asfixiante e perversa condicionante constitucional de só poder incidir sobre “questões” concretas embora “de relevante interesse nacional”.

Por curiosa coincidência ou não, no mesmo dia o Prof. Jorge Bacelar Gouveia (que acabou de ser indicado pelo PSD para Presidente da Comissão de Fiscalização do SIS), escrevia no “DN” em defesa da mesma solução, considerando que “os difíceis equilíbrios deste novo tratado internacional, as coisas boas e más que encerra, não permitem nenhuma esclarecedora escolha de perguntas, que pode ser sempre acusada de pretender fazer prevalecer uma das posições de “sim” ou de “não”. E logo rematando, e a nosso ver bem, que o melhor é permitir “o referendo directo do tratado, transferindo para a campanha a explicitação dos seus meandros jurídicos e sendo o cidadão o total depositário de um juízo global em relação à conveniência ou inconveniência da respectiva ratificação por Portugal”.

Entretanto, como a referida notícia do «Público» atribuía a Guilherme Silva uma referência a uma proposta similar do PCP na última revisão constitucional e outra referência a que a possibilidade que o PSD agora pondera já tinha sido defendida pelo PS no ano passado, impõe-se duas rectificações e precisões.

A primeira destina-se a sublinhar que nunca o PS defendeu tal coisa, e muito menos no ano passado, pois o que aconteceu foi que o PS, quando tomou a infeliz iniciativa de abrir um novo processo de revisão constitucional, veio defender que houvesse dois tempos sucessivos – um para uma revisão centrada sobre as autonomias regionais e outro, separado e posterior, para adaptar a Constituição portuguesa à dita “Constituição europeia”, o que, como se perceberá, é muitíssimo distinto e diferente de modificar o normativo constitucional quanto aos referendos sobre questões de integração europeia.

E, falando-se do PS, nesta matéria o que mais importa lembrar é que, na revisão aprovada a mata-cavalos na véspera do 25 de Abril deste ano, a sua principal e lamentável responsabilidade foi a de tranquilamente se ter aliado ao PSD e ao CDS-PP para, antes de qualquer referendo, consagrar a subalternidade da Constituição da República face à dita Constituição Europeia, matéria grave e sensível que já não suscitou do Presidente da República um milésimo do empenho e activismo que anda a anunciar ir colocar na defesa do “sim” no aventado referendo sobre o novo tratado.

A segunda precisão tem em vista lembrar o que muitos nesta altura gostariam de fazer esquecer, ou seja, que para além da revisão de 1992 em que PS e PSD se recusaram a aceitar a proposta do PCP para que fosse constitucionalmente possível um referendo sobre Maastricht, em outras três sucessivas revisões – em 1997, em 2001 e em Abril deste ano – sempre o PSD e o PS se opuseram implacavelmente às repetidas propostas do PCP para que passasse a ser possível realizar referendos explicitamente sobre a ratificação por Portugal de tratados relativos à integração europeia.

A este respeito, é também de lembrar, como um entre muitos exemplos, que em 24.09.2003, portanto a mais de seis meses de distância em relação à data em que veio a ser aprovada a última revisão constitucional, a Comissão Política do PCP voltava a salientar que essa solução “simplificaria obviamente a elaboração das perguntas e daria maior clareza ao debate e à finalidade do referendo” mas PSD, PS e CDS-PP fizeram orelhas moucas, como já tinham feito aliás há três e há sete anos.

Podem alguns pensar que o que importaria era registar, ou mesmo agradecer, a “flexibilidade” agora manifestada pelo PSD e pronto. Mas, nos tempos que correm, compreender-se-á que, pela nossa parte, sublinhemos que bem podiam muitas personalidades da vida política, muitos comentadores e jornalistas fazer alguma reflexão sobre os prejuízos, atrasos, imbróglios e dificuldades causados por um impenitente preconceito e hostilidade de princípio em relação às propostas do PCP.

E, em matéria de referendo sobre a dita “Constituição europeia”, não se venha com a fábula de que “o passado é o passado, agora temos de estar todos no mesmo barco da procura da melhor solução”.

Na verdade, por um lado, falta saber se a ponderação que o PSD diz estar a fazer não visa sobretudo descarregar para cima do PS a culpa de um referendo confuso e trapalhão derivado das actuais limitações constitucionais, no caso de o PS se manter na mesma oposição de sempre à solução de há muito defendida pelo PCP.

E, por outro lado, atendendo às responsabilidades respectivas que aqui sumariámos, do que não pode haver a mínima dúvida é que são o PSD, o PS e o CDS-PP que, mais do que ninguém, têm o dever de adiantar possíveis perguntas e esclarecer, com a máxima clareza e transparência, quais são as reais consequências dos dois resultados possíveis de um referendo em torno da dita “Constituição europeia”.