O assassinato de Catarina Eufémia é um expressivo documento
do que foi o fascismo em Portugal.
A lição da sua vida e da sua morte será guardada pelos tempos
fora não só entre os operários agrícolas do Alentejo mas por todo o
país

Catarina Eufémia


Chamava-se Catarina
o Alentejo a viu nascer
(...) (~) em 1928, na aldeia de Baleizão, concelho de Beja.
Segunda filha de um casal de camponeses pobres, Catarina Eufémia bem cedo experimentou as dificuldades de sobrevivência dos «sem terra» em zona de latifúndio.
Cresceu com os trigos, contou os anos pelas ceifas e por escola teve a lonjura da campina, onde a escrita se fazia com o gadanho e a foice.
Ainda criança perdeu o pai, José Diogo Baleizão, e abandonou as bonecas de trapos, farinha e papel, para colaborar no sustento da família, constituída pela mãe, pela irmã mais velha Maria Eufémia, por ela (Catarina) e a mais nova, Delmira da Assunção.
A adolescência passou-a nas terras do Monte Olival, propriedade do agrário Fernando Nunes, gerando lucros com fome. calor, sede e magra jorna.
Aos 17 anos casou com um conterrâneo, o «Carmona», então trabalhador da CUF, e muda-se para o Barreiro onde nasceria a primeira filha do casal, Maria Catarina. Porém, o companheiro de Catarina é despedido e o agregado familiar volta para Baleizão.


Corriam, na época, tempos de grandes fomes e heróicas lutas. O proletariado agrícola alentejano fervia de revolta face às aviltantes condições de trabalho, sendo remetido a uma dieta espartana de pão duro, alho e bacalhau seco.
A aldeia de Baleizão não destoava na paisagem económico-social do Alentejo dos anos 50, e Catarina Eufémia, que se recusara a aceitar Um salário de miséria, discutido com José Vedor, feitor de Fernando Nunes, palmilhava diariamente 12 quilómetros até ao Monte Campano, por a jorna ser ali mais alta do que no Monte Olival.



Em 1954, a luta do campesinato alentejano ganhou novas e redobradas energias


É nesta lida, dia a dia mais pesada, que se vai gerando o futuro António Gaspar, segundo filho e primeiro rapaz de Catarina, nascido em Baleizão.
Já experimentada na resistência à ofensiva de fome e exploração, Catarina Eufémia ingressa no PCP com 24 anos e, pouco depois, fazendo parte do Comité Local, lidera a organização das mulheres da sua terra.
Entretanto, o marido fora colocado em Quintos, como cantoneiro, e para lá se encaminha Catarina onde, no Outono de 1953, nasce o seu terceiro rebento, o José Adolfo. Contudo, não havendo condições de permanência na «casa dos cantoneiros», Mãe Catarina regressa com a sua prole a Baleizão.


Em
1954, a luta do campesinato alentejano ganhou novas e redobradas energias, como, nos dá conta «o camponês», publicado em Março desse ano: «A participação das mulheres camponesas na luta por melhores jornas é um grande passo em frente no reforçamento da Unidade. Em muitos lados, elas vão à Praça de Jornas, fazem parte de Comissões com os homens e constituem também as suas próprias Comissões. Esta rica experiência deve ser seguida, chamando as camponesas à luta pela conquista de melhores jornas nas ceifas».
Tal como em anos anteriores, os agrários e o Governo aprontavam-se para imporem o pagamento de jornas baixas e impedirem, por qualquer meio, a resistência dos explorados. Porém, a tais manobras e intimidações se opunha, cada vez com mais firmeza, a luta unida e organizada dos trabalhadores.
E assim que, por todo o lado, se vão multiplicando amplas comissões de unidade, com homens e mulheres, nas Praças de Jornas, em herdades, montes e ranchos, conduzindo, sem tréguas, a luta contra o fascismo e os latifundiários.

Entretanto, já em Fevereiro desse ano, a GNR insultara uma comissão de 25 mulheres em Vale de Vargo e espancara uma delas, tendo o Tribunal de Serpa condenado 3 camponesas a 18 dias de prisão.

Nos campos crescia a agitação social e Baleizão não era obviamente diferente dos demais baluartes de resistência. Aí, perante a recusa sistemática do agrário Fernando Nunes em pagar a jorna pretendida para a apanha das ‘favas, os camponeses deliberaram entrar em greve e, a partir de sábado (15 de Maio), ninguém foi trabalhar.

Dado o impasse da situação, na terça-feira seguinte (18 de Maio), um grupo de camponeses onde figurava Catarina Eufémia, vai ao Monte Olival para tentar negociar, mais uma vez com o feitor, o aumento. Em vão!
Contudo, no dia seguinte, o conflito iria sofrer dramática evolução, pois Fernando Nunes apostara quebrar a Unidade dos grevistas e mandara buscar um rancho a Penedo Gordo, pagando 18$00 aos homens e 12$00 às mulheres.

A notícia correu célebre entre as gentes de Baleizão, que, perante esta acção divisionista, decidem ir falar aos trabalhadores do rancho de Penedo Gordo.
A justeza da posição reúne 300 baleizoeiros que tomam o caminho do Monte Olival, no intuito de esclarecerem o rancho de fora quanto aos motivos porque lutavam a exortá-los à Unidade. «Não foram precisas muitas falas para os trabalhadores se entenderem. Estavam todos de acordo, não se trabalhava com salários de fome».
(2)


No entanto, alguém previra o natural acordo e solidariedade, e teimando em vergar a vontade popular, chamara a GNR, que prontamente cerca o rancho do Penedo Gordo, obrigando-o a trabalhar sob a ameaça das armas e pela jorna determinada pelo «senhor da terra».
O Povo de Baleizão, ao tomar conhecimento da provocação, avança unido para a herdade, determinado a demover o grupo «contratado», mas depara com



forte barreira de guardas republicanos que, de espingardas aperradas, lhe impede a marcha.
Perante a pertinaz resistência do proletariado agrícola, inabalavelmente convicto dos seus direitos e firme nos objectivos, os guardas deixam passar um grupo de 15 mulheres lideradas por Catarina Eufémia.
Grávida e com o pequenito José Adolfo, de 8 meses, ao colo, esta avança decidida, confiante e sem temor, para o diálogo.
E então que, detrás de um monte de favas, lhe salta traiçoeiramente ao caminho o facínora tenente Carrajola que, recém-chegado de Beja com reforços, lhe aponta uma pistola-metralhadora, perguntando: «O que queres, bruta?»
«O que eu quero é pão para matar a fome aos meus filhos! »
A resposta soou em três tiros desfechados à queima-roupa.
Mortalmente ferida, tombou de pé Catarina Eufémia, vítima da besta fascista.

(...) Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
(...)C)

Morreu de pé e sem medo «como deve saber morrer um membro do Partido à frente das massas, encabeçando a luta de classe». (3)
No dia 19 de Maio de 1954, às 11 horas da manhã, Catarina Eufémia, mulher esforçada e mãe corajosa, destemida comunista, ultrapassou a morte e, vencendo o
tempo, reergueu-se em vermelha bandeira dentro de cada um de nós.
Catarina — orgulho do proletariado agrícola alentejano!
Catarina — símbolo de firmeza e exemplo de militante do Partido Comunista Português!
Catarina Eufémia — a-sempre-viva na nossa memória!
Porque...
(...) Quem viu matar Catarina
Não perdoa a quem matou! (‘)~


(‘) AFONSO, José — do poema «Cantar Alentejo»
(2) COELHO, José Dias — A Resistência em Portugal, 2. ed., Porto, Inova, 1974, p. 20
(3) CUNHAL, Álvaro — Homenagem a Catarina Eufémia, in «Avante!», n. 2 (24 de Maio de 1974)

 
«Militante» nº172 de 1989