MEMÓRIAS DAS LUTAS ANTIFASCISTAS DE 1954
Bento Rodrigues Quaresma*

Recordar as grandes lutas dos rurais no ano de 1954 é lembrar Catarina Eufémia.

Foi um ano fértil em grandes lutas que iriam marcar profundamente o movimento antifascista em todo o Alentejo.

Estas lutas começaram na margem esquerda do grande rio do sul. Era inimaginável os efeitos que teriam nos tempos que se seguiram a luta iniciada em Pias no inesquecível mês de Março.

Eram tempos difíceis, em muitos lares palrava o espectro da fome, por isso as reivindicações das lutas travadas eram em tomo do trabalho e do valor dos salários; bandeiras agitadas sobretudo pelos rurais, mas que tinham a solidariedade de muitos que viam no estado de miséria dominante situações de grande injustiça.

A luta que começou por uma manifestação de um grupo de jovens rurais de Pias que estavam organizados clandestinamente e, portanto, conscientes dos objectivos que prosseguiam, rapidamente se alastrou a toda a aldeia e alargou-se às povoações limítrofes, como Vale de Vargo, Aldeia Nova de S.Bento e Serpa.

Gerou-se um movimento em tomo de justíssimas reivindicações, que arrastou muitas dezenas de camponeses para a rua.

A PIDE cedo se apercebeu da ameaça que representava para o regime o movimento reivindicativo e as respectivas consequências políticas. Assim, fez deslocar várias brigadas para a margem esquerda e apoiando-se nas forças repressivas locais, desencadeou uma onda de repressão, provavelmente a maior operação feita até aquele momento pelo regime nas povoações referidas, tendo gerado um ambiente semelhante a um autêntico estado de sítio.

Em consequência da repressão foram presos dezenas de trabalhadores rurais e vários democratas, que se desdobraram de forma destacada em actos de solidariedade.

A situação agravou-se com o início das ceifas, por alturas de Maio, um mês sempre muito combativo, aproveitado pelos trabalhadores rurais para manifestarem reivindicações que visavam o aumento salarial e melhores condições devida.

Era um período do ano em que os seus braços eram indispensáveis, face ao expressivo volume de trabalho a desenvolver na agricultura. Apesar da grande rudeza física do trabalho, os salários praticados eram baixos e a jornada de trabalho era de sol a sol. Eram períodos de grandes tensões sociais, em que de um lado os agrários, apoiados nos meios repressivos, não cediam, e do outro lado, os trabalhadores resistiam heroicamente.

Neste período já os agrários recorriam a mão-de-obra vinda do Algarve ou das Beiras para substituírem os trabalhadores locais. Os recém chegados eram vistos como elementos de perturbação do processo de luta, porque para além de tirarem o trabalho aos locais sujeitavam-se a salários mais baixos, deitando por terra as poucas conquistas que gradualmente iam sendo alcançadas.

No entanto, as posições tomadas em geral pelos trabalhadores em movimentações sociais, eram sempre construtivas, no sentido de estabelecerem contactos com os trabalhadores contratados, com a finalidade de os esclarecer e ganhá-los para as suas causas.

O processo reivindicativo desenvolveu-se e gradualmente alastrou-se a outras povoações do Alentejo. O culminar deste processo teve lugar no dia 19 de Maio de 1954, quando um grupo de camponeses e camponesas de Baleizão decidiu contactar abertamente um grupo de trabalhadores recém chegados para que estes trabalhassem pelo salário que tinha sido estabelecido e apresentado aos patrões, e igualmente reivindicarem trabalho, porque não faltava neste período do ano. Quando esse grupo se dirigia para o local onde decorriam as actividades agrícolas foram interceptados por uma força da GNR, comandada pelo tenente Carrajola, a mando da PIDE e seguramente por influência do agrário, para evitar o contacto com aqueles que estavam a trabalhar e escorraçar os grevistas da herdade.

Foi na sequência dos tiros disparados pelo tenente que caiu por terra Catarina Eufémia. É justo afirmar que Catarina e os seus companheiros lutavam pelo pão e iam em missão de paz, para convencerem os seus colegas de trabalho a lutarem por condições mais dignas.

Revoltados e dando expressão à sua luta os camponeses de Pias também contactaram um grupo de trabalhadores oriundos do Algarve. Conscientes dos perigos

- que enfrentavam, foram para a luta mesmo com a presença de uma força policial, que de imediato carregou sobre os manifestantes no meio dos trigais. Simultaneamente, foi dada ordem de prisão a 51 trabalhadores que se encontravam no local, dos quais dois ainda conseguiram fugir, os restantes foram levados. Mas a «colheita dos comunistas» como os elementos da PIDE afirmavam, não ficou por aqui. Fizeram duas prisões também em Vale de Vargo, uma das quais a minha, tendo sido alegado que eu seria um dos agitadores mais destacados.

O principal argumento utilizado referia-se ao facto de sustentar os grevistas através de fiado que concedia, ajudando assim os trabalhadores a manterem-se em luta. Na situação de greve, naturalmente que as dificuldades eram acrescidas pelo facto de não receberem o salário, o que impedia a compra e o pagamento de bens de primeira necessidade que consumiam diariamente. Deste modo, ficavam mais vulneráveis e em consequência teriam de regressar mais rapidamente ao trabalho e aceitar as condições impostas pelos patrões.

Esta era uma forma de expressar a minha solidariedade, dado que tinha na altura uma mercearia, que foi prontamente selada no acto da minha prisão.

Fomos metidos num jipe e seguimos ao encontro dos companheiros de Pias, que estavam concentrados à sombra de uma imponente azinheira, rodeados de duas dezenas de guardas.

Era um início de verão particularmente quente, a temperatura ambiente era elevada, a generosa árvore constituía o único abrigo, foi uma imagem que ficou, tantas vezes recordada quando anos mais tarde ouvia a canção do Zeca, Grândola Vila Morena. Permanecemos neste pseudo campo de concentração até às vinte e três horas, altura em que apareceu um autocarro que nos conduziria para as masmorras.

Estava uma bela noite de luar, muito amena, uma noite como tantas outras de Verão que, em situações normais e face à nossa juventude e abertura de espírito, proporcionavam momentos de bonitos sonhos, enlaçados num punhado de desejos e de projectos que, no fundo, reflectiam uma vida plena de esperança, alicerçada numa existência jovem que ainda tinha tudo para viver.

Mas, nessa noite a realidade era bem diferente, as sensações outras, pairava no ar um ambiente de obscuridade, carregado e repressivo, até parecia que o autocarro fedia com cheiros nauseabundos vindos dos opressores, provavelmente o cheiro da pomada dos lustrosos e brilhantes sapatos dos PIDES. São sensações que o tempo não faz esquecer.

À hora da partida arrumaram-nos em grupos de dez e em duas filas, com três guardas de cada lado. Deste modo, éramos conduzidos para o autocarro que se encontrava estacionado a uns trezentos metros. Quando me preparava para integrar uma das filas, recebi um empurrão e uma ordem dum guarda, para quedar-me onde estava, porque seria o último. Fiquei naturalmente apreensivo e de imediato questionei o guarda, que se manteve em silêncio sem referir o motivo da ordem. Quando finalmente me acenaram para seguir para o autocarro, fui abordado pelo tenente que quis, com postura excessivamente educada e afável, confirmar alguns dos acontecimentos passados no mês de Março em Pias. Nessa altura percebi que o interrogatório começara. Contudo, estranhei o ambiente e os modos da abordagem, ao transparecer um ar de cordialidade que insinuava um tratamento diferente daquele que era aplicado na relação com os restantes companheiros aprisionados. Este foi sem dúvida o primeiro interrogatório, porque, posteriormente e por várias vezes, fizeram referência ao silêncio que na ocasião manifestei.

Quando cheguei ao autocarro já o chefe da brigada Caimoto tinha alcunha, que me foi sussurrada ao ouvido por um companheiro poucos instantes depois de ter ocupado o lugar que me era destinado. Ao olhar para trás deparo-me com o rosto sorridente de um conhecido que viajava no último banco, imediatamente me apercebi que em menos de dez minutos foi posta a alcunha e transmitida a todos os presos. Este episódio caracteriza bem o Homem da nossa terra, que mesmo em situações difíceis e de crise não perde o humor nem a ironia. Aliás, reflectindo bem sobre a alcunha dada, «Caimorto», esta ajustava-se plenamente à figura sinistra aparentada pelo chefe da brigada. Desnecessário será referir o efeito que causou este pequeno pormenor na minha disposição e, naturalmente, na dos restantes presos.

Depois da contagem dos presos lá seguiu o autocarro comandado pelo célebre Caimorto rumo a destino desconhecido.

A primeira paragem foi em Beja, perto das três horas da manhã, em frente ao Posto da Polícia, onde subiram mais catorze companheiros todos de Baleizão, que tinham sido presos pela PIDE nessa noite. Entre os presos encontrava-se um grande amigo e companheiro que tinha conhecido de encontros clandestinos, tratava-se do saudoso camarada Troncão, infelizmente desaparecido do nosso convívio.

Completada a lotação do autocarro, com sessenta e cinco presos, levantámos ferro e seguimos pela estrada de Ferreira, agora seguramente rumo aos cárceres de Lisboa.

Este grupo, constituído por homens considerados grandes inimigos do regime, tinha o destino marcado com a prisão, como se de malfeitores se tratassem, quando a principal razão das suas atitudes residia no facto de se insurgirem contra as condições de miséria em que viviam e as injustiças a que eram sujeitos.

Fomos conduzidos ao Forte de Caxias e distribuídos por várias salas. Eu e uns quantos fomos instalados na sala n.° 4. Dias depois começou o pesadelo, com os interrogatórios na Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE, onde éramos agredidos física e psicologicamente. Suportámos as torturas com grande sentido de dignidade, na defesa dos nossos valores, camaradas e organizações onde militávamos clandestinamente, que eram células do Partido, então o único na resistência e na oposição, o Partido Comunista Português.

Nos finais de Maio é prestada homenagem à nossa inesquecível Catarina, que personifica o exemplo de coragem, de tenacidade e de heroísmo que marcaram os dias difíceis e sombrios da grande luta do nosso Povo pela Liberdade e pela Justiça. Assinalar esse dia e sobretudo manter viva a chama que impulsiona a luta por valores e causas nobres, deverá ser a preocupação das gerações mais idosas como forma de assegurar a passagem do testemunho para os mais jovens e, assim, dar continuidade aos ideais pelos quais Catarina deu a vida. A luta do nosso Povo e as suas tradições revolucionárias constituem um património indispensável para a construção do nosso futuro colectivo. Com esta preocupação, seguramente que os cravos da Revolução de Abril não irão murchar sob os espinhos que emergem nos percursos históricos difíceis que se avizinham para o futuro.

Maio de 2002

* Destacado militante do PCP nos anos 50 na Margem Esquerda do Guadiana