Estatuto do Ministério Público e Código do Processo Penal
Intervenção da deputada Odete Santos
20 de Maio de 1998

 

Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhor Secretário de Estado
Senhores Deputados.

Temos hoje em debate dois diplomas cuja análise conjunta permite avaliar em que sentido entende o Governo usar de um dos instrumentos - 1 apenas - de combate à criminalidade.- o Código do processo Penal.

Mas deste não pode dissociar-se a análise das soluções constantes do Estatuto do Ministério Público.

O Governo mantém, e reforça mesmo o modelo constante do Código de Processo Penal de 1987. Deverá apurar-se se o reforço se faz sempre no sentido correcto.

Governo pretende alterar a Lei Orgânica do Ministério Público. Importará saber até onde vai o Governo na definição da autonomia do Ministério Público. Importará saber se no desenho do modelo de Ministério Público corresponde às exigências de um Ministério Público dirigindo a investigação criminal a cargo das polícias agindo na dependência funcional daquele.

Importa saber se as alterações pretendidas cumprem simultaneamente os objectivos de combater a criminalidade nomeadamente a criminalidade altamente organizada, aquela que insidiosa e impunemente mina os esteios da Democracia.

Mas simultaneamente importa averiguar se os direitos liberdades e garantias dos cidadãos, vítimas e arguidos, têm na legislação processual penal as garantias suficientes dos seus direitos fundamentais.

É necessário que se reconheça que pouco e pouco se chegou a determinado modelo, em que muito pesou a crise da justiça penal, o surto de novos e sofisticados fenómenos de criminalidade próprios de uma sociedade a contas com um neoliberalismo selvagem, geradora de factores criminógenos entre os possidentes e que estrebucha, sem meios para combater esses novos e sofisticados fenómenos, que como um polvo, se alimentam da diminuição dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Somos atirados para modelos em que às garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos se sobrepõem critérios de eficácia e oportunidade, com aquelas tornadas conflituantes, em nome da segurança que os cidadãos reclamam.

Isto porque não se tomam medidas a montante e a jusante. Porque em nome do neoliberalismo, se esqueceu, a montante, que a Democracia tem várias vertentes- a económica, a social, a cultural E que é a Democracia, na sua plenitude, que eficazmente combate a criminalidade, a grande criminalidade, que vive do seu enfraquecimento.

Porque, numa sociedade em crise, a jusante da intervenção da Justiça penal, se cria um conflito artificial , fomentado por alguns, entre a segurança dos cidadãos e a reinserção social do condenado.

No meio situa-se a máquina judiciária, e quase que só a ela se exige que garanta a segurança dos cidadãos.

O modelo processual penal é acossado, e em nome do que dizem ser um excessivo garantimos, vamos fazendo alterações, que sempre teoricamente encontram justificação, mesmo para cercear os direitos das vítimas. Como aconteceu com o sistema de reparação das vítimas de crimes, vazado no actual Código do Processo Penal.

Em nome da pureza do princípio da adesão deixaram-se milhares de vítimas sem a justa reparação, que no Código do processo Penal de 1929 lhes estava garantida. Salienta-se, desde já como positiva, a alteração que nesta matéria, propõe o Governo para o Código do Processo Penal.

Em nome da eficácia foi enfraquecendo a figura do Juiz de Instrução surgido no modelo processual penal como garante dos direitos , liberdades e garantias.

Acusada a falência dos Juizes de Instrução, criou-se o modelo de direcção da investigação constante do actual Código do processo Penal. Para o triunfo da qual se reivindicou como necessário dotar o Ministério Público de verdadeira autonomia, dotá-lo dos meios técnicos e humanos necessários para verdadeiramente dirigir a investigação criminal, sem o que se corriam riscos de policialização da mesma. Com todos os perigos, à mesma inerentes.

A entrega da direcção da investigação ao Ministério Público, magistratura que muito justamente reivindicava a consagração constitucional da sua autonomia, indispensável a quem, pela própria Constituição, tem o Estatuto de defensor da legalidade democrática, entrou no texto Constitucional através da revisão de 1989.

Mas continuavam a faltar os pressupostos que confeririam ao Ministério Público na direcção da investigação o papel de defensor da legalidade. Faltavam os meios técnicos e humanos, como ainda continuam a faltar.

Os que desconfiavam da fartura, quando ao Ministério Público fora entregue à direcção da investigação, julgaram poder respirar quando se consagrou constitucionalmente a sua autonomia.

Logo surgiu o contraponto. Uma alteração da Lei Orgânica do Ministério Público viria a tentar limitar a fiscalização pelo Ministério Público dos órgãos de polícia criminal, à actividade processual destes.

As consequências que daqui se poderiam extrair, ficaram bem patentes num famoso diploma dito- e mal dito- de combate à corrupção, através do qual se permitiam actividades extra- processuais da Polícia Judiciária sem controle do Ministério Público. Como bem se anotou no Ac do Tribunal Constitucional que considerou inconstitucional o pré- inquérito.

Chegados ao ano de 1998, e depois de rejeitadas propostas do PCP para que a revisão constitucional consagrasse expressamente maior autonomia do Ministério Público, nomeadamente através da constitucionalização da Constituição do Conselho Superior do Ministério Público, ao qual não pertenceriam personalidades designadas pelo Ministro da Justiça.

Era isto que constava de projectos de lei anteriormente apresentados pelo PCP, PS e CDS, que unanimente consideraram que a inclusão daqueles entidades contrariava a autonomia pois representavam um cordão umbilical de ligação ao executivo.

Estranha-se dada a posição então assumida pelo PS, enquanto oposição, que no Estatuto agora proposto, não tenho retomado a sua iniciativa legislativa- o Projecto de Lei 78/VI. E não vale dizer que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade do diploma que viria a ser a Lei 23/92. É que o Tribunal Constitucional também não disse que era inconstitucional não incluir representantes do Governo no Conselho. A Constituição não o exige, deixando para a lei a definição da composição do mesmo.

E o que importa saber é se o PS mantém o que disse em 1992 relativamente à necessidade, como garantia da autonomia, de excluir a representação do Executivo do Conselho Superior do Ministério Público.

O PCP apresentará, na especialidade, uma proposta de alteração, retomando o seu Projecto de Lei 88/VI. Saber-se-á então quais são os limites à autonomia desejados pelo Partido Socialista.

E isto não será de somenos importância na análise das propostas de lei, nomeadamente na análise da Proposta relativa ao Estatuto do Ministério Público.

A questão da autonomia não é de somenos importância na reflexão sobre a constituição do Departamento Central de Investigação e Acção Penal.

Vem justificada a criação deste Departamento com o facto de o Ministério Público para verdadeiramente dirigir a investigação em crimes de grande complexidade, necessitar de concentração de meios que o municiem em relação a criminalidade altamente organizada.

Esta foi, aliás, a justificação para a criação do NAT.

Como tive ocasião de assinalar a proposta constitui um modelo de Ministério Público um tanto diferente daquele por que vínhamos clamando. Não é, no entanto, um modelo completamente diferente. Porque os meios proporcionados ao Ministério Público com a criação do DCIAP, tornam possível o exercício de uma verdadeira direcção da investigação criminal. Investigação que continuará a cargo dos órgãos de polícia criminal, a quem, aliás, nomeadamente à Polícia Judiciária, devem ser concedidos meios que não têm, para a investigação de crimes de extraordinária complexidade.

Sem os meios que é justo prever que o DCIAP proporcionará, teremos um Ministério Público completamente desmuniciado, apondo assinaturas em volumosos processos, sem poder de facto dirigir a investigação criminal.

Ponto é que a este reforço de meios correspondam também meios de reforço da magistratura judicial. Um Juiz de província a quem é remetido um processo de extraordinária complexidade, também mais não fará do que apor um visto sobre uma assinatura do Ministério Público.

Mas ponto é também que se esbatam as possibilidades de governamentalização do Ministério Público do DCIAP.

O que deste modo se coloca não é uma questão concreta, é uma questão teórica sobre a autonomia do Ministério Público. E o modelo da mesma definido na Lei.

Ora, de acordo com a proposta, os Magistrados do Ministério Público no DCIAP são nomeados em comissão de serviço renovável. Esta forma de nomeação criando dependências, a juntar à ainda que mitigada ligação ao executivo, pese embora o novo e mais transparente regime proposto relativamente às Directivas recebidas por uma magistratura hierarquizada, é inaceitável por poder prefigurar riscos de dependência em relação ao Governo . Não está em causa um Governo determinado, um PGR particularizado, mas um modelo de autonomia que queremos mais alargado.

E aqui se entronca o Estatuto do Ministério Público com as alterações que vêm propostas para o Código do Processo Penal. A nova criminalidade, as exigências de celeridade da justiça penal- tantas vezes levadas a tal ponto que impediriam a realização da Justiça - conduzem à inevitabilidade das propostas de processos abreviados. Com a ampliação de poderes do Ministério Público na determinação da medida da pena.

Somos colocados nesta matéria, em nome da segurança dos cidadãos, perante uma de duas opções: ou se aceitam soluções que levem a aproximar o momento do cometimento do facto delituoso do momento em é pronunciada a sentença, ou continuam a avolumar-se as exigências de penas mais graves, e de uma execução de penas radicada na pura vindicta, sem quaisquer finalidades de reinserção social do condenado.

É inevitável a aceitação da 1ª hipótese, já que a 2ª poderá redundar em espirais de violência que se abateriam sobre as vítimas e sobre os cidadãos em geral.

No entanto, a aceitação dos processos abreviados não pode fazer esquecer que estamos a criar uma justiça para pobres. Uma justiça expedita, a qual rapidamente cairá com a sua mão pesada sobre o arguido que não dispõe dos meios complexos que permitirá à criminalidade altamente organizada, alongar o processo, subtrair-se à acção da Justiça, para comparecer em julgamento, quando comparecer, longos anos após, quando esbatidas as consequências sociais do crime.

Por isso, porque apesar de o processo abreviado poder impedir a continuação da habituação criminosa, e , se conjugada com uma verdadeira política de reinserção social, poder restituir mais rapidamente o infractor à vida em comunidade, porque apesar disso,não podem os desfavorecidos ver diminuídas elementares garantias, discordamos em absoluto que em nome da eficácia ,se impeça, por exemplo, o arguido de requerer a instrução. Cremos mesmo, que esta é uma solução inconstitucional. Os processos abreviados devem merecer uma especial atenção.

Mas a proposta de alterações do Código do Processo Penal deve merecer ainda especial atenção, já que estando em causa o estatuto das duas magistraturas, deve obter-se um diploma consensual, que não dê origem a clivagens que vão emperrar a máquina judicial. Parece que esta proposta não teve um parto normal.

A verdade é que há que compatibilizar as exigências de maior eficácia no combate à criminalidade para protecção das vítimas, com os direitos fundamentais do cidadão de que o Juiz é o último garante.

E nem todas as soluções propostas realizam tal desiderato.

Deve merecer total rejeição a proposta de alteração do nº 3 do artigo 356º do Código do Processo Penal.

Na verdade, quer permitir-se que possam ser lidas em audiência as declarações prestadas perante o Ministério Público, quando actualmente apenas podem ser lidas as prestadas perante o Juiz.

Esta solução parece-me inadmissível. Porque nas declarações prestadas perante o Ministério Público a defesa não teve possibilidade de contraditar. As mesmas foram prestadas perante quem investiga para recolher prova para a acusação.

Compreende-se que a proposta tem como pano de fundo debilidades ou algumas dificuldades sentidas na investigação. Mas a investigação tem de ser melhorada, por forma a não necessitar de suprir deficiências com a violação do princípio do contraditório.

Mas também outras dificuldades práticas de funcionamento da Justiça Penal se vislumbram noutras propostas apresentadas. Estamos a falar na solução dada ao artigo 40º que pretende contornar a declarada inconstitucionalidade de intervenção no julgamento do Juiz que tenha tido qualquer intervenção na investigação.

Estamos a falar da proposta relativa ao artigo 398º nº 2 que viola o princípio do acusatório pois permite-se que o Juiz que discorda da sanção proposta pelo Ministério Público, julgue, ele mesmo, o arguido em processo sumaríssimo.

Compreendemos a necessidade de acelerar o processo penal.

Já nos parece, porém inadmissível que em nome dessa celeridade se restrinja o direito constitucionalmente consagrado de recurso, estabelecendo-se a inadmissibilidade de recurso em relação ao despacho judicial que aprecia questões como a competência do Tribunal e a falta de legitimidade do Ministério Público.

Como nos parece que estão em causa, simultaneamente os direitos dos cidadãos e o estatuto da magistratura judicial, como garante daqueles direitos quando se impede o Juiz, durante o inquérito, de aplicar ao arguido medida de coacção de natureza diferente. Parece-nos que se acentua demasiado a função passiva do Juiz de Instrução defendida por alguns como solução óptima para o processo penal. Sê-lo-á para a celeridade, mas não para o cidadão.

E é também uma violência para o cidadão poder ser submetido a julgamento sem que nenhum indício exista contra si. O que poderá acontecer dada a impossibilidade constante da Proposta, de o Juiz rejeitar a acusação por falta de indícios. É claro que também esta proposta vem justificada com base no princípio do acusatório. Mas a verdade é que, quando convém, se esquece este princípio. Cremos que, de facto, o Processo Penal convive muito mal com a figura do Juiz de instrução.

A proposta de lei tem propostas positivas, e já atrás se assinalaram. A que se juntam as propostas relativamente ao processo de ausentes, falida que está a contumácia. Ela mesmo responsável pelo enfraquecimento da imagem da Justiça Penal perante os cidadãos.

Como positivo é o retorno no caso de pequenos delitos.

O que hoje estipula o Código do processo penal- prisão até apresentação em julgamento- em nada contribuiu, com a permanência dos cidadãos nas esquadras, para a segurança dos cidadãos.

Diga-se em abono da verdade que a autorização legislativa que deu origem ao actual Código obrigava a manter o sistema anterior- Levantamento do auto de notícia e libertação do arguido com a sua notificação para comparecer no julgamento em determinado dia e hora. Obrigava a isto por que a alínea da autorização legislativa foi alterada na Assembleia.

Mas o anterior Ministro da Justiça ignorou deliberadamente a autorização da Assembleia, e com tal atitude obrigou muitos cidadãos a permanecerem injustificadamente na esquadra. Determinado, desta forma, a necessidade de criação dos Tribunais de turno necessários para que os cidadãos que cometem pequenos delitos ( cerca de 90% dos que comparecem nos Tribunais de turno) não permaneçam desnecessariamente presos).

Enfim, e a terminar, Senhor Presidente, Senhores Deputados, Senhor Ministro da Justiça, Senhor Secretário de Estado, a eficácia tem de ser temperada com um sistema que garanta as vítimas, os cidadãos, e que respeite o Estatuto das duas Magistraturas.

As soluções propostas lançam algumas dúvidas que consideramos pertinentes. modelo do processo penal não pode ser, nem é, o mais importante meio de combate à criminalidade.

Combata-se substantivamente a criminalidade. E não teremos de andar às arrecuas, descobrindo onde é que se pode cortar mais uma fatia nas garantias.

Disse.