“Lei das rendas” – Um novo e agravado factor
de instabilidade social
Conferência de imprensa do PCP, com a participação
de Jorge Cordeiro, da Comissão Política
12 de Outubro de 2004
1. A proposta de legislação sobre o arrendamento representa um novo e grave factor de instabilidade social e de precariedade do direito à habitação constitucionalmente consagrado, e um indisfarçável instrumento concebido para servir os interesses do capital financeiro e da sua actividade especulativa no imobiliário.
2. Utilizando como argumentos factos reais como os da degradação do parque habitacional, do número reduzido de habitação destinada a arrendamento, da existência de proprietários pobres sem possibilidades de investimento para as obras o governo pretende impor uma reforma que, longe de constituir qualquer resposta séria a estes problemas, tem por objectivos essenciais o de facilitar os despejos, eliminar o direito à estabilidade do arrendamento e à habitação, favorecer e dinamizar a especulação imobiliária.
À precariedade do emprego e à incerteza da garantia de uma remuneração certa o governo propõe-se agora adicionar um regime de total precariedade no direito à habitação.
3. Apresentada como uma reforma em nome de todos, capaz de beneficiar inquilinos, senhorios e Estado e vendida sobre a retórica da preocupação social com os mais fragilizados as alterações ao arrendamento urbano — assentes na mais pura concepção neoliberal de redução da habitação a um mero bem económico ou mercadoria sem observação da sua função social — servem objectivos bem diversos e opostos aos que são proclamados.
4. A actual legislação defendida em nome de dois objectivos — o da dinamização do mercado de arrendamento e o da recuperação do parque imobiliário degradado — assenta deliberadamente num falso pressuposto: o de que o regime de arrendamento urbano em vigor em Portugal seria sinónimo de rendas congeladas desde 1974. Ora a verdade é que desde 1981 vigora um regime de opção por renda livre ou condicionada para todos os novos contratos e que desde 1990 que a liberalização das rendas é total quer quanto ao valor, como já sucedia desde 1981, quer quanto à duração dos contratos e que mesmo as rendas anteriores a 1980, as chamadas «rendas congeladas», foram objecto em 1985 de uma actualização extraordinária e sujeitas a partir desse ano a uma actualização de acordo com uma portaria anualmente publicada.
5. Por mais palavras ou anúncios publicados destinadas a iludi-la, a verdade, nua e crua, é a de que o principal objectivo que se esconde por trás da lei das rendas é o de favorecer o capital financeiro com interesses no imobiliário — num país que apresenta das mais elevadas taxas europeias de retorno do investimento imobiliário (12,2% para uma média europeia bem inferior) — e possibilitar as melhores condições para a expansão do investimento e da especulação imobiliária nas zonas centrais das cidades, esgotado que está, em parte a rentabilização do capital financeiro nas periferias.
6. A legislação agora proposta visa sobretudo a agilização dos despejos indispensável à libertação de fogos e imóveis dos seus actuais locatários, sejam eles particulares ou comerciantes, em áreas financeiramente apetecíveis do ponto de vista dos interesses imobiliários.
Uma legislação que, ao consagrar um regime legal que eliminando garantias legais ao inquilino tende para uma relação entre inquilino/senhorio ditado apenas pela lei do mercado, se traduzirá num novo factor de instabilidade social decorrente da impossibilidade de largos sectores de inquilinos em suportarem os valores das rendas sujeitas ao regime «negociado», na mais absoluta precariedade do direito á habitação resultante da possibilidade real de despejo a prazo que a caducidade dos contratos permite.
7. Uma instabilidade geral extensível à esmagadora maioria dos arrendatários disfarçada sob a capa dada às «garantias» aos mais idosos e desfavorecidos, garantias estas que estão longe de o serem, como o comprova:
• Um regime de subsidio apoiada construído na base de uma taxa
de esforço manifestamente elevada (superior a 20% na larga maioria dos
casos) insuportável para milhares de idosos vivendo das suas pensões
de reforma;
• A imposição do agravamento da renda a suportar pelos locatários
em regime de renda apoiada (de 10, 20 ou 30%) em função da «desproporção»
entre a dimensão do agregado e a tipologia do fogo julgada pelo governo
como a suficiente para os locatários;
• A obrigação de existindo habitação social
disponível com renda apoiada no mesmo concelho e de igual tipologia o
arrendatário ser transferido para essa habitação, favorecendo
assim a libertação de fogos de zonas centrais destinadas a operações
de especulação;
• A passagem para regime de renda condicionada independentemente da idade
do inquilino desde que realizadas obras de beneficiação.
8. O objectivo atribuído à liberalização do regime de arrendamento de contribuir para a reabilitação do parque habitacional não resiste à simples prova da legislação proposta não estabelecer um nexo sólido e imperativo entre aumento da renda e obras de beneficiação do fogo ou prédio enquanto condição para aquele, de a legislação já hoje prever e permitir a alteração ao valor da renda, mesmo das condicionadas, se realizadas obras de conservação pelo proprietário ou ao facto de a degradação do parque habitacional ser extensivo a milhares de prédios em regime de propriedade horizontal.
9. A apresentação da liberalização do arrendamento enquanto condição capaz de dinamizar o respectivo mercado é uma imensa falsidade, evidenciada:
• Pela existência de 540 mil fogos devolutos que poderiam ter sido
colocados no mercado de arrendamento sem qualquer constrangimento quanto à
fixação de rendas;
• Pelo facto de desde 1990, ou seja há praticamente 15 anos, se
terem celebrado apenas 300 mil contratos de arrendamento não sujeitos
a qualquer condicionante contratual;
• Pelo facto de a fixação dos valores de arrendamento continuarem
a empurrar, pelo seu montante, para a opção por compra de habitação
própria;
• Pela comprovada opção da maioria dos proprietários
(hoje com forte presença de entidades financeiras) de deliberadamente
apostarem na degradação dos imóveis e na sua demolição
para a realização de mais-valias;
• Pela prioridade que o capital financeiro continuará a dar ao
mercado de construção e venda como campo privilegiado para rentabilização
e retorno rápido e sem compromissos futuros do investimento realizado;
• Pela verificação da experiência de outros países,
designadamente em Espanha onde decorridos 10 anos após a entrada em vigor
da lei do arrendamento, realizada também em nome da reanimação
do mercado de arrendamento, a percentagem dos fogos alugados passou de 18 para
10%.
10. A habitação e o direito ao seu usufruto em condições condignas constituem sem dúvida um dos problemas presentes no país. Mas esses problemas e a sua expressão estão sediados, não na legislação sobre o arrendamento, mas sim em outros e mais decisivos factores. É na ausência de uma política de solos e no regime de especulação de terrenos que ela permite, é na desresponsabilização quase total do Estado no investimento na habitação social ou na redução progressiva do investimento do Estado nos programas de reabilitação de imóveis, e é na ausência de mecanismo fiscais de incentivo a investimentos na reabilitação urbana dirigidos aos proprietários, que radica a actual situação da habitação e dos seus problemas.
A clara opção de favorecimento do capital financeiro, em contraste com a continuada desresponsabilização do Estado na promoção directa de habitação e na reabilitação, tem expressão na redução da intervenção do Estado ao apoio à aquisição de habitação própria destinadas a favorecer os lucros bancários, com as consequências conhecidas ao nível do endividamento das família, demonstrada no facto de o valor destinado a este último objectivo ter sido de 80 milhões de contos só no ano de 2002, o dobro de toda a verba (40 milhões de contos) destinada em dez anos (de 1992 a 2002) à reabilitação do parque habitacional.
11. Os problemas da habitação e do direito ao seu uso exigem uma nova política oposta àquela que tem sido praticada ao longo dos últimos anos. Uma política orientada para: assegurar o carácter eminentemente público da função urbanística; aumentar o investimento da administração central destinado à construção de habitação social, de fogos a custos controlados e à reabilitação de fogos e imóveis; adoptar medidas fiscais destinadas a apoiar os pequenos proprietários na recuperação dos seus fogos e imóveis e a penalizar os que os mantêm deliberadamente devolutos; apoiar o movimento cooperativo habitacional e incentivar os diversos promotores para a produção de fogos a preços acessíveis.
12. Reafirmando a sua mais firme oposição à legislação proposta, o PCP não só desenvolverá uma ampla intervenção no sentido de denunciar e evidenciar os reais objectivos que lhe estão associados, como defenderá na Assembleia da Republica que esta assuma nesta matéria o seu poder legislativo bem como apresentará um conjunto de propostas e iniciativas que respondam a alguns dos problemas colocados por esta.