As palavras das cantigas
«Ary não procurou no
poema?espectáculo a forma mais fácil de conquistar
o público para rapidamente se pavonear na nomeada. O seu
histrionismo temperamental poderia induzir a esse equívoco.
Mas o patético da desolação que esse gesticular
tem por fundo desfaz a imagem do poeta industrioso em engendrar
popularidade com a canção que anda na boca de toda
a gente. Desse jeito queria ele, efectivamente, que o seu nome
andasse. Mas por um esfomeado peditório de amor. E ei?lo
poeta todo mãos abertas para apanhar tudo o que a vida
dá. Porquê esta voracidade? Leiam?no. É a
raiva de quem tudo perdeu. Uma terrível orfandade. Tudo
calado, todos sem mãe, sem pai. É a orfandade de
todos na ânsia comunial de fugir à solidão
de ser só ele nascido da mãe que não teve
e do pai que nunca terá.
E sendo-o, tudo é silêncio magoado.
Mesmo a Alfama garrida. Mesmo essa Lisboa, cidade do seu tormento
em que as noites são feitas do basalto da tristeza; metrópole
das misérias escondidas à socapa pelo amarelo da
Carris; o cauteleiro que apregoando as horas de boa sorte consome
o fado da pouca sorte; a eternidade friorenta do homem das castanhas
à esquina do inverno; a coisa mais triste deste mundo que
é a velhinha sentada no banco do jardim, estátua
da desgraça que amargou até ao fundo, fazendo com
os ossos as maneiras de estar ali, rainha das chagas, sentado
sobre o mundo. E é nessa Lisboa cujos azulejos, vestindo?a
de azul e branco, são ladrilhos da saudade, é nessa
cidade do pouco Tejo, pouco Tejo do cacilheiro e muita mágoa
de quem saudosamente espera (o quê?) que o poeta tem a sua
raiz. Lisboa é o seu amor a sua aventura e o seu desespero.
O lugar onde ele persegue a ternura que está rodeada por
cardos. Porque ao fim e ao cabo o amigo está sempre longe.
E se chega, vem atardado, entardecendo?lhe a alma. Pungência
de amores inconsentidos à luz diurna, beijo mordido na
penumbra derramada pela estrela da tarde. E neste transe de transida
fome de amor a que só os fados nocturnos da maldição
dão abrigo, tem o poeta um dos mais belos arrebatamentos
do nosso lirismo erótico. É o poema Estrela da Tarde
que, em ser cantável, nada perde da sua alta graduação
literária. Curiosamente, ou melhor, apropriadamente à
inspiração lírico?satírica, que afastou
da literatura para dar à canção, o mesmo
acontece com o poema O País. O Gomes Leal das sátiras
modernas de o Fim de Um Mundo não desejaria melhor sucessor.
Extraído do prefácio de Natália
Correia ao livro «As Palavras das Cantigas» - José
Carlos Ary dos Santos. Edições «Avante!».
Lisboa, 1989
Embora tivesse produzido algumas letras
para músicas no quadro da sua actividade de publicitário,
o aparecimento de Ary dos Santos no universo
da canção faz-se com o seu poema Desfolhada
com a música de Nuno Nazareth Fernandes, interpretado
por Simone de Oliveira que ganharia o primeiro prémio do
Festival da RTP da Canção em 1969.
|