Ary por:
Baptista-Bastos
Ary dos Santos morreu com 48 anos, cheio
de álcool, de solidão e amargura. O álcool,
a esse, não escondia: bebia imoderadamente, gregário
ou desacompanhado. A solidão e a amargura, essas, tentava
escondê?las, esquecê?las, mergulhando num oceano de
palavras, de frases, de locuções, de imagens ? para,
depois, emergir desse turbilhão com poemas e cantigas,
cantigas e poemas que reflectiam um tempo, uma época, um
amor, um encontro ou um desencontro; uma furtiva lágrima,
uma precária felicidade. Mas a essa onda de solidão
e de amargura Ary dos Santos opunha o seu vozeirão e impunha
as palavras como bandeiras desfraldadas:
0 que é preciso é termos confiança
Se fizermos de Maio a nossa lança,
isto vai, meus amigos,
isto vai!
Isso. Isso mesmo: rasgando o desespero com gritos
e com cóleras, juntando a sua voz à voz do imenso
protestar colectivo ? eis Ary dos Santos: cabotino, espectaculoso,
truculento, corajoso como poucos; cabeça alevantada, punho
cerrado e erguido, olhar de fogo, a chispa indomável de
uma labareda interior que o consumia: E, também; um grande
poeta ? acentue?se: Um grande poeta português, da linhagem
de um Guerra Junqueiro, de um Gomes Leal, de um Cesário
Verde ou de um Gabriel Marujo ou de um Linhares Barbosa (porque
não?), todos na mesma fileira, todos eles empenhados, de
uma maneira ou de outra, em restituir a voz àqueles a quem
a voz tinham roubado. A pedanteria lítera endossava a poesia
de Ary dos Santos para os fojos mais sombrios das «letras
de canções». Letrista, somente; é o
que diziam. Será. À maneira dos trovadores medievais,
dos menestréis dos condados, que divertiam o povo e zombavam
dos senhores da guerra e do mando. Mas a poesia de Ary dos Santos
supera esses confins de desdenhosa fronteira: foi o que foi, é
o que é. E frequentemente; é poesia da melhor que
produziu a nossa lírica.
Doente, limitado na vida de liberdade que sempre
cultivara com grandeza e esmero, Ary dos Santos continuava a trabalhar.
Redigia um livro autobiográfico; «Estrada da Luz?Rua
da Saudade», e preparava a edição de dois
livros de versos, «Trinta e Cinco Sonetos» e «As
Palavras das Cantigas». Foram seiscentas, as letras para
canções que Ary dos Santos compõs: renovou,
discutiu, pôs em causa, fez aluir tabus, impôs uma
nova visão e, um novo espelho da própria realidade
portuguesa: Formou com Nuno Nazareth Fernandes e Fernando Tordo
duas parcerias famosas: estes três homens deram uma volta
importantíssima na assim chamada «canção
ligeira» e ensinaram?nos uma nova maneira de ouvir sons
portugueses com o idioma português.
Esteve em todas, o José Carlos Ary dos Santos.
Com o irrespeito que lhe era natural; com a irreverência
que lhe era comum, com a figura impositiva, imponente, rara.
Declamou poemas seus e de outros grandes poetas
portugueses em celeiros, estábulos, .palanques improvisados,
estádios, clubes e colectividades populares; ao ar livre;
no tablado dos teatros e no chão rijo das eiras alentejanas.
Cantou a Reforma Agrária, cantou o malho e a bigorna, a
Liberdade. Cantou?nos. Cantou Abril, cantou Abril! Engrandeceu?nos
e melhorou?nos como seres humanos. Militante do Partido Comunista
Português, nunca foi um espectador passivo ou pacificado
dos acontecimentos que fizeram a nossa História próxima
recente.
A maneira dos grandes poetas portugueses que,
ao longo do passado colectivo, com frequência encarnaram
o próprio corpo da Nação esquecida, humilhada
e ferida, Ary dos Santos foi a cólera, a imprecação,
o protesto: Disse português em Portugal e no estrangeiro.
Disse que estávamos vivos, que éramos pessoas, que
estávamos aqui e aqui continuaríamos. Dïsse
que pertencíamos a uma raça de homens livres e indomáveis,
que livre e indomavelmente havia caminhado pelo Mundo, rasgando
os sulcos de outras pátrias. Disse isto e muito mais. Não
parava. Nunca parou. Não há memória de o
Ary vez alguma ter parado. A não ser agora: por motivos
de força maior.
Texto do jornalista Baptista
Bastos publicado no «Diário Popular» de 19
de Janeiro de 1984
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