Seguem-se alguns excertos de uma entrevista que o camarada Álvaro Cunhal deu ao Avante!, em 22 de Junho de 1995.
Conheci-o nos anos 30. Primeiro na Universidade Popular Portuguesa onde assisti a várias das suas conferências e tive ocasião de falar com ele no quadro de um relacionamento com outros conferencistas. Depois ainda nessa época, em encontros fortuitos. Eu era jovem, mas já então era militante do PCP, da direcção da Juventude Comunista e com intensa actividade no movimento associativo dos estudantes. Apenas para melhor se compreender o meu relacionamento com Bento de Jesus Caraça, lembro que em 1935 passei à clandestinidade e fui a Moscovo, e em 1937 fui preso e estive cerca de um ano na prisão. A relação com B. Caraça teve logo à partida presentes dois pressupostos. Eu via nele um intelectual conhecido e de grande valor considerado como comunista embora então não soubesse se era ou não membro do Partido. E ele via em mim um jovem conhecido como militante comunista já então com certa responsabilidade.
(A Universidade Popular), com a influência qualificada de B. Caraça, tratou-se de uma actividade cultural de grande projecção. O grupo de conferencistas incluía pessoas de valor como Dias Amado, Mário de Castro. Também de meu pai, Avelino Cunhal. Eram pessoas com diferenciadas personalidades individuais mas identificadas no fundamental das suas opções socio-políticas. B. Caraça, cientista, professor, pedagogo, homem de cultura, pronunciava-se contra a cultura como monopólio de uma elite. Explicitava que um sábio pode não ser um homem culto e um homem culto pode não ser sábio. A cultura deveria ser um valor e um bem do povo. Daí a defesa da democratização da cultura como elemento de liberdade do ser humano e da democracia política.
A cultura exige conhecimento e o povo deve ter acesso à aquisição do conhecimento. É de lembrar a ideia sublinhada por B. Caraça de que, para tal, o problema económico é aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. A actividade cultural de B. Caraça, como professor, como conferencista, como ensaísta, como orientador de actividades editoriais, é inseparável das suas concepções acerca da sociedade existente, da cultura, da democracia, dos valores político-éticos, do ideal de uma transformação profunda da sociedade de assumido conteúdo humanista.
Ele foi o grande orientador, animador e dinamizador de uma valiosa série de obras editadas pela Cosmos. Tive ocasião de falar numerosas vezes com ele a este respeito. Posso mesmo dar um testemunho directo. Propôs-me que escrevesse um volume sobre "A descoberta da Terra", ou seja o avanço histórico do conhecimento pelo ser humano do nosso planeta. Ainda há dias, arrumando papéis, encontrei muitas centenas, para não dizer milhares, de folhas com notas de leitura, apontamentos, capítulos já redigidos, ilustrações para esse trabalho. Não teve seguimento porque em 1941, pouco depois de libertado após uma segunda prisão, passei de novo à clandestinidade.
Ele dava valor ao valor dos jovens. Tinha a sua própria experiência: professor universitário aos 25 anos, professor catedrático antes dos 30. Criava nos alunos o gosto pelo estudo, pela ciência e pela cultura, estabelecendo ao mesmo tempo com muitos deles um relacionamento amistoso, de convívio e de liberdades. Ele era e gostava de afirmar-se um homem simples. Andava a pé na cidade em cabelo quando na sua época praticamente toda a gente usava chapéu. Vestia a sua samarra alentejana. Falava com os mais novos e os mais novos falavam com ele como se tivessem todos a mesma idade. Sentia-se bem com os jovens e os jovens sentiam-se bem convivendo com ele. No estudo, em iniciativas culturais, em conversas sobre os mais variados temas, em passeios, em fins de semana passados na praia. De sublinhar que nesses colectivos estavam sempre presentes, surgindo com uma espontaneidade correspondente ao pensamento e ao sentir da cada qual, os problemas da época.
O sentido ético e humanista do seu pensamento traduzia-se, entre muitas outras coisas, pela valorização da coragem na afirmação da verdade científica (Galileu Galilei) ou das grandes figuras da Índia como Tagore e Gandi. Tinha particular preferência literária por Romain Rolland e aconselhava a muitos jovens a leitura de "Jean-Christophe". Não menosprezava porém a influência política directa. Numa época em que a censura à imprensa e a proibição da importação de publicações comunistas, ele conseguia receber e facilitava a leitura aos jovens de Le Monde, semanário dos conhecidos intelectuais comunistas franceses Henri Barbusse e Romain Rolland, intelectuais aos quais estava também muito directamente ligado como responsável e animador em Portugal do Movimento pela Paz Amsterdam-Pleyel dirigido por esses dois intelectuais franceses.
O relacionamento que acabo de referir com B. Caraça tinha como adquirido que B. Caraça era comunista. Mas nas condições de clandestinidade a organização e os contactos no Partido eram compartimentados e nenhum membro do Partido se afirmava como tal, a não ser na sua ligação orgânica. De mim para mim, tinha por certo que B. Caraça era membro do Partido, mas não o poderia afirmar. O relacionamento partidário directo deu-se em 1943. Em 1941-42, época da reorganização do PCP, eu tinha de novo passado à clandestinidade e sido enviado como funcionário do Partido para o Norte do País. Em Outubro de 1942, tendo sido presos vários dirigentes do Partido, fui chamado de novo para Lisboa, a fim de integrar o Secretariado desfalcado com a prisão de Júlio Fogaça. Ora era precisamente Júlio Fogaça que assegurava na época a ligação partidária com B. Caraça. Fui eu encarregado de restabelece-la, o que sucedeu em 1943.
No mundo então envolvido na 2.ª Guerra Mundial, 1943 foi um ano marcado em Portugal pelo impetuoso ascenso do movimento operário, a afirmação do PCP como um grande partido nacional e o empreendimento pelo Partido da unidade antifascista na luta pela liberdade e a democracia. B. Caraça deu nessa conjuntura uma contribuição em alguns aspectos determinante para alcançarmos com êxito tal objectivo.
Lembro que o III Congresso do PCP (primeiro realizado na clandestinidade),
noticiado no Avante! de Novembro de 1943, anunciava a criação
do Movimento de Unidade Nacional Antifascista, e o Avante! de Janeiro de 1944
noticiava a formação do Conselho Nacional, orgão supremo
do MUNAF.
O êxito deveu-se em grande parte à acção de B. Caraça,
como militante do Partido, graças à sua influência nos meios
intelectuais e entre os antifascistas. Acompanhei muito de perto toda essa acção.
(...) O Avante! de Janeiro de 1944 confirmando a criação
do MUNAF anunciava a formação do Conselho Nacional em que inicialmente
entrámos, como representantes do PCP, B. Caraça e eu próprio.
O MUD (Movimento de Unidade Democrática) foi formado e desenvolveu-se como uma realização e expressão do MUNAF, aparecendo à luz do dia como um novo movimento e invocando o direito à legalidade. (...) De lembrar a Comissão Central do MUD (1946), que é de interesse citar, que contou na sua composição com Azevedo Gomes, Bento Caraça, Hélder Ribeiro, Maria Isabel Aboim Inglês, Fernando Mayer Garção, Manuel Mendes, Lobo Vilela, Alberto Dias, Manuel Tito de Morais, Demétrio Duarte, Luciano Serrão de Moura e Mário Soares. O MUD, assim como o MUD Juvenil, formado no seu desenvolvimento, foi perseguido e reprimido. B. Caraça foi demitido de professor, na vaga de demissões que atingiu também outros destacados antifascistas, alguns dos quais comunistas.
Essa atitude (de apagar a ligação de Bento Caraça ao PCP) insere-se na gigantesca operação de falsificação da história a que assistimos actualmente. Escrevem-se volumes, artigos e conferências e pronunciam-se discursos e declarações tentanto branquear a ditadura, a sua natureza fascista, a sua natureza de classe, e todos os seus crimes. Falseia-se a história da heróica resistência antifascista, da luta pela liberdade e a democracia. Insulta-se a revolução de Abril, que a reacção acusa de ter sido causadora da situação desastrosa actual a que nos conduziu a política e governos de direita. Falseia-se a história do levantamento militar, do levantamento popular, das realizações e conquistas da revolução democrática. Falseia-se a história das actividades e do processo contra-revolucionário que conduziu à situação de desastre nacional em que actualmente o país se encontra. E em toda esta operação de falsificação da história, é linha de força o apagamento, o silêncio ou a grosseira deturpação e a calúnia contra o PCP. Aos falsificadores da história não convém que o povo português saiba que eram comunistas homens a quem tanto devem o povo, o país, a cultura, a conquista da liberdade e da democracia.